Há pessoas entre os evangélicos e os católicos ultra que se tornam numa espécie de robôs, sem razão nem consciência, logo que alguém carrega no botão “criminalizar o aborto” ou “fora com os homossexuais, os imigrantes e os estrangeiros”. Nessa altura despertam os seus reflexos pavlovianos e estão prontos a dançar ao som da música mesmo quando o flautista é o próprio diabo. Mas, ao contrário dessa lógica, é preciso recordar que a identidade do cristianismo não se radica no imobilismo, mas sim nos sinais do Espírito que trabalha na história, conduzindo os discípulos de Jesus ao âmago da Verdade, de um modo cada vez mais profundo. Propostas do padre Tomáš Halík, autor de Paciência Com Deus, num ensaio sobre a revolução da misericórdia proposta pelo Papa Francisco e o necessário “novo ecumenismo”. Cedido pelo autor, o 7MARGENS publica este texto em Portugal.

Tomáš Halík, em Dezembro de 2018, na entrevista ao 7MARGENS sobre o seu livro Diante de Ti os Meus Caminhos. Foto © Maria Wilton/Arquivo 7Margens.
Recentemente os maiores e mais influentes jornais do mundo inteiro publicaram nas suas primeiras páginas, uma inesperada e sensacional notícia emanada do Vaticano. A notícia era que a questão central da mensagem do Papa, para além do seu aspecto formal, teria escandalizado o mundo por ter falado dos homossexuais e do seu direito a amar, na mais humana das formas, como qualquer pessoa do século XXI que possua simultaneamente um coração aberto e a cabeça no seu lugar. Porém, na sua mensagem, o Papa não referiu o passado, ou seja, o incontestado facto de que séculos a fio os homossexuais foram alvo de maledicência, ódio e perseguições causando múltiplas tragédias humanas e não poucos suicídios. Foi precisamente o que aconteceu há relativamente pouco tempo numa zona rural da República Checa. Um jovem homossexual temendo a reacção da sua família perante o seu coming out não encontrou saída senão no suicídio.
Desta vez o Papa não se limitou à referida pseudo-progressista posição da Igreja, expressa em determinados documentos onde somos aconselhados a lidar empaticamente com as pessoas LGBT enquanto continuamos a oferecer-lhes, como única solução possível, uma vida de abstinência sexual. Já não há paciência para ler determinados documentos eclesiais que nos fazem lembrar o conto da rapariga esperta convidada a ir a uma festa no castelo “nem vestida nem nua”. Jamais esquecerei o olhar e o tom de voz de um intelectual católico e gay quando respondeu à minha afirmação de que talvez pudéssemos aceitar a sua união como sendo um mal menor – palavras essas que eu, de bona fide, considerei não só generosas como progressistas. “Padre”, replicou-me ele, “porque haveria eu de considerar como diabólica esta minha relação de amor, fidelidade e respeito mútuo, relação essa que dura há uma vida com o meu companheiro?”
Nas décadas seguintes pude verificar, para minha enorme surpresa, que a existência de uma grande percentagem de gays entre o clero católico não se limitava a simples rumores espalhados pelos inimigos da Igreja. Aliás, acabei por conhecer uns quantos casos muito diferentes entre si: aqueles que, levando uma vida casta, deixavam transparecer na sua atitude pastoral uma delicada e maternal compreensão e os outros que, em completa negação da sua orientação sexual, viviam uma vida dupla. Esta duplicidade levava-os a sentir e a exercer uma agressividade ultra-conservadora contra os homossexuais, atitude que mais não era que uma compensação inconsciente dos seus mais íntimos conflitos.
Graças à minha experiência como psicoterapeuta pude verificar que entre o grupo dos mais belicosos apoiantes do movimento contra o “tsunami da homossexualidade” se encontrava um padre a tentar negar a sua própria situação.
Reacções às declarações do Papa

O que o Papa disse neste filme não é vinculativo. O seu apoio às uniões civis (que não são o mesmo que um matrimónio) de pessoas LGBT é uma atitude benevolente que já vem de trás e que, em declarações anteriores, tinha ficado bem expressa. Fiquei, portanto, à espera de uma reacção às palavras do Papa por parte dos seus inimigos conservadores. Será que, segundo um grupo de cardeais conservadores, seriam necessárias novas “correcções filiais” ou mesmo dubia (dúvidas, objecções), tal como aconteceu anteriormente com alguns cardeais, quando o Papa Francisco diplomaticamente escreveu na sua encíclica Amoris Laetitia, que todos os divorciados e recasados não deveriam ser severamente excluídos da Eucaristia, nem de modo algum forçados a uma abstinência sexual perpétua sem se ter em conta o contexto de cada caso previamente avaliado, atenta e benevolamente, em simultâneo com a consciência do avaliador que deve ser igualmente tida em consideração?
Isto pressupõe que os opositores do Papa pretendem uma rígida adesão à letra da Lei que é exactamente a atitude à qual Jesus se opôs durante toda a sua vida e que expressou não apenas nos seus encontros com as elites religiosas do seu tempo, mas sobretudo quando alertou os seus discípulos para o perigo do “fermento dos fariseus”.
Quanto aos actuais “fariseus” penso que ainda estão a discutir o que deverão fazer. Uns quantos bispos disseram que o Papa teria simplesmente abusado da linguagem e que as suas palavras não tinham valor dogmático. “Tenham calma amigos! O que o Papa disse não tem relevância. Está tudo como sempre foi e assim continuará a estar.”
Esta afirmação está perfeitamente em sintonia com aquilo que um padre checo me disse logo após a eleição do Papa Francisco: “No Vaticano fui aconselhado a manter-me calmo e silencioso porque o Papa é velho, não vai durar muito e, portanto, tudo voltará a ser o que sempre foi.” De igual modo, durante o pontificado de João XXIII, os “escribas da Cúria” tinham recorrido à idade do Papa antes de este anunciar o Concílio que iria mudar para sempre a história da Igreja Católica.
Um dos principais representantes da Igreja Checa elaborou uma fantasiosa teoria política da conspiração sobre o que acima mencionámos, alegando que este “filme” teria sido dirigido por um homossexual com a finalidade de influenciar as então próximas eleições americanas.
Francisco e Trump dois mundos nos antípodas

As teorias da conspiração acerca do “filme” do Papa Francisco ajustam-se às pessoas que aderem totalmente à amoralidade, às mentiras, à arrogância e ao cinismo do político [Trump] cuja vida inteira, acções e atitudes, claramente demonstram que o seu único deus é o dinheiro. Dinheiro esse que lhe permite adquirir bens luxuosíssimos assim como arranha céus altíssimos, esposas formosas que depois troca como se fossem camisas, e que acabou por alcançar o mais poderoso lugar político do planeta (embora a sua personalidade o incapacite para exercer qualquer cargo político). E, para cúmulo, foi apresentado como “o salvador dos valores cristãos”.
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Há pessoas entre os evangélicos e os católicos ultra que se tornam numa espécie de robôs, sem razão nem consciência, logo que alguém carrega no botão “criminalizar o aborto” ou “fora com os homossexuais, os imigrantes e os estrangeiros”. Nessa altura despertam os seus reflexos pavlovianos e estão prontos a dançar ao som da música mesmo quando o flautista é o próprio diabo. Tais pessoas obliteraram as qualidades morais e intelectuais do indivíduo em causa que, num ápice, se transformou no seu “herói cristão.”
Mais ainda do que pelas palavras que proferem, as pessoas podem ser reconhecidas e identificadas através da sua linguagem corporal. Para quem vê os discursos políticos [de Trump] transmitidos pela televisão seria elucidativo desligar o som e limitar-se a observar atentamente as expressões faciais e os gestos do político em causa. Aconselho a que se observe atentamente a exagerada gesticulação de Trump, o seu queixo espetado numa manifestação de auto-satisfação, os seus sorrisos forçados, o modo como se auto-aplaude e a seguir se revejam os documentários filmados dos discursos de Mussolini. As semelhanças são chocantes!
É, portanto, lógico que quem admira Trump só pode odiar o Papa Francisco. Não se trata de uma mera escolha política, mas sim de uma escolha moral e cultural. Para a Igreja poder exercer a sua missão profética de “hospital de campanha” deverá incluir na sua missão a análise do clima moral e político da sociedade e permitir uma análise crítica dos respectivos actores.
Devido à sua experiência de Igreja perseguida, penso que a Igreja Checa deveria deixar de ser a “Igreja do silêncio” nestes tempos em que os símbolos religiosos são ultrajados pelo uso impróprio que deles faz a extrema direita.
O Papa não reforma dogmas nem estatutos, mas sim a vida da Igreja

Regressemos ao Papa Francisco e ao que se tornou por demais evidente, em diversas ocasiões, no que respeita ao seu estilo e à reforma eclesial. O Papa não é um revolucionário decidido a mudar a doutrina da Igreja. As pessoas que desde há muitas décadas o conhecem bem não vêem nele um progressista, mas sim um misericordioso. A misericórdia é a chave para se entender a sua personalidade e a sua reforma.
Este Papa não muda regras escritas nem destrói estruturas externas; no entanto ele transforma a praxis e a vida. Ele não muda a Igreja a partir do exterior. Transforma-a de um modo muito mais profundo, ou seja, espiritualmente, a partir de dentro. Transforma-a através do espírito do Evangelho. É uma revolução da misericórdia. Com ele as palavras não são meras fórmulas vazias. É precisamente por isso que a sua reforma encerra um potencial de transformação da Igreja, trazendo-a de novo para a essência da mensagem de Jesus, de um modo mais profundo do que muitas outras reformas anteriores.
Quando no âmbito dos meios católicos checos “detentores da verdade” surgiu um panfleto sugestivamente intitulado “Misericórdia sem verdade?” decidi não intervir, confiante como estava que qualquer leitor atento imediatamente se lembraria da contra interrogação: “Verdade sem misericórdia?”
Enfatizar a convicção de que uma mudança comportamental traria consigo um impacto muito maior do que uma simples alteração dos textos da lei e respectivas estruturas, foi aliás a atitude que inspirou não apenas a Igreja primitiva mas também, como já foi dito, a filosofia subjacente à dissidência checa durante o comunismo. Na epístola a Filémon lemos uma história paradigmática. O apóstolo Paulo recolheu e tratou o escravo fugitivo Onésimo, baptizou-o e depois mandou-o regressar a casa do seu dono, Filémon, advertindo este de que o escravo continuaria a servir o seu senhor. Porém Filémon deveria recordar-se de que Onésimo agora se tornara seu irmão em Cristo.
Quer isto dizer que o cristianismo não incitou à rebelião para abolir a escravatura como o fez Espártaco. A sua pretensão foi criar um clima moral de irmandade e de mútuo respeito pelo valor intrínseco de cada ser humano, clima esse que foi propício ao fim da escravatura. No entanto é necessário acrescentar que, durante os séculos subsequentes, a Igreja pouco fez no que respeita ao fim da escravatura. A ênfase colocada nesta temática foi desesperadamente evocada por figuras proféticas como Bartolomeu de las Casas.
Encontro uma certa analogia entre esta ética política e a dissidência anticomunista, principalmente no que ficou consignado no movimento da Carta 77, na Checoslováquia. Os signatários deste documento não pretendiam uma revolução que derrubasse o governo vigente durante o período da ocupação soviética do país (que durou de 1968 a 1989). Pretendiam sim lançar um desafio ao governo para que este cumprisse as leis que tinha publicado, mesmo sabendo de antemão que este desafio nunca seria aceite.
Nesse documento exortavam-se os cidadãos a “comportar-se como cidadãos livres” como se as leis estivessem em vigor, coisa que os próprios signatários, para dar o exemplo, passaram a fazer, não obstante saberem que teriam de arcar com intimidações e repressões. No entanto, esta modalidade de resistência moral não-violenta, transformou-se numa espécie de “escola de coragem” que por sua vez, graças também a determinadas circunstâncias económicas, culturais e de política externa, nos anos oitenta do século passado, acabou por conduzir a protestos em massa bem como à queda do regime comunista com uma aparentemente “incrível facilidade.”
Seria certamente esclarecedor enumerar os múltiplos factores que convergiram no anno mirabilis de 1989; porém seria cínico esquecer o facto de que muitos cidadãos passaram então a actuar como pessoas verdadeiramente livres, mesmo que o tenham apenas feito de modo provisório.

Sim, a mentalidade de um certo tipo de “catolicismo sem cristianismo” (que prevalece no ambiente dos actuais apoiantes de Trump) lembra-nos não só o modo de agir dos escribas e fariseus do tempo de Jesus como também o comportamento das elites comunistas durante o descalabro final do regime. Como se poderá conviver, simultaneamente, com o peso multi-secular da história da Igreja, manter o respeito pela Igreja, esse sentire cum ecclesia, e a fidelidade ao Evangelho, enquanto se busca a promessa de Deus que nos oferece “um futuro cheio de esperança?”
O Papa Francisco não muda dogmas nem tão pouco contesta aquelas passagens dos documentos eclesiais que reflectem conclusões há muito caducas e que com o passar do tempo se tornaram venenosas e, portanto, nocivas. De igual modo, o Concílio Vaticano II não anulou oficialmente os indefensáveis anátemas de Pio IX relativas à liberdade de consciência, de imprensa e de religião (os infames Syllabus Errorum). Limitou-se a publicar um documento unificador intitulado “Alegria e Esperança” [Gaudium et Spes] que, ao incorporar estes valores no seu texto os tornou, pela primeira vez, parte integrante dos ensinamentos da Igreja.
As mudanças na atitude pastoral realizadas no pós-concilio (lembro que o Vaticano II era suposto ter sido um Concílio Pastoral) geraram quer declarações quer estruturas que não resistiram à passagem do tempo.
Graças ao seu exemplo de coragem cristã, o Papa Francisco inspira-nos de modo a não nos deixarmos intimidar nem desencorajar por certos e determinados acontecimentos ocorridos na Igreja. Pelo contrário, interpela-nos a agir como filhos livres de Deus, exercendo responsavelmente a liberdade que Cristo nos outorgou e não nos submetendo ao jugo da escravatura de uma religião legalista, tal como o Apóstolo Paulo advertira na sua carta aos Gálatas.
“Nada está a acontecer, vai ficar tudo na mesma”, vociferam os coveiros da Igreja e os adeptos de uma religião morta. Com efeito, nada do que possa vir a acontecer poderá restringir a liberdade do Papa Francisco, tanto mais que o não vão poder apedrejar tal como os habitantes de Nazaré quiseram fazer a Jesus. Francisco não é um herético assim como não o são todos aqueles que aceitaram o seu desafio quanto a uma renovação espiritual da Igreja. É imperativo prosseguir neste espírito, confiantes no poder revolucionário da misericórdia divina, que é o alfa e o ómega da teologia de Francisco, mesmo que o Papa tenha perdido, em termos pessoais, o poder de prosseguir com as devidas reformas.
No início do Ano da Misericórdia, uns quantos de nós manifestaram algumas dúvidas mormente sobre como interpretar o amor de Deus que então nos parecia um objectivo inatingível. Mas as dúvidas dissiparam-se quando ficou claro o motivo pelo qual o Papa nos convidou a pensar a misericórdia como o meio através do qual convidamos Deus a participar nas nossas complicadas e dolorosas relações humanas, deixando de O considerar como garante de princípios imutáveis entendendo-O sim como um poder bondoso, generoso, compreensivo, clemente e curativo, capaz de transformar não só os homens, como a Igreja e a sociedade.
A horizontalidade da “fraternidade humana” tal como o Papa a propõe na sua encíclica Fratelli tutti, precisa da linha vertical de um amor infinitamente misericordioso, capaz de ultrapassar todas e quaisquer fronteiras humanas. Esse amor sem fronteiras é por isso um objectivo inacessível neste mundo, sendo apenas alcançável quando formos abraçados por Deus. Porém, este ideal não é para ser transformado em lei como se fosse um ensinamento de Jesus. Pelo contrário deverá manter-se como um impulso constantemente provocador e profeticamente inspirador, ou seja, como uma meta que um cristão nunca conseguirá totalmente alcançar.
No início da pandemia, um determinado grupo de cristãos ainda tentou jogar a cartada de um Deus maléfico e vingativo, para assustar aquelas pessoas que já se tinham afastado da influência da Igreja. O medo sempre foi um chão fértil para os agentes de uma falsa religião. E toda e qualquer dor humana lhes serve de prova relativamente às suas próprias visões apocalípticas. Tal como João Paulo II, o Papa Francisco repete enfaticamente as palavras de Jesus, cheias de esperança e de força: “Não temais! Não vos deixeis intimidar.”
A pandemia do fundamentalismo e um novo ecumenismo

Mesmo nestes tempos em que, também no meu país, inúmeras pessoas estão a morrer devido à pandemia do coronavírus, não consigo deixar de me preocupar com um outro tipo de pandemia, ou seja, com a pandemia do fundamentalismo. Sempre que observo o comportamento dos adeptos de Donald Trump, dou comigo a lutar contra uma fortíssima tentação de me deixar arrastar pela dúvida. E questiono-me: será que no seio da Igreja Católica ainda existem as condições necessárias para um diálogo ecuménico? Por contraste – e essa é a minha opinião – o diálogo inter-religioso consegue ser muito fecundo e fácil, sobretudo se os interlocutores forem pessoas instruídas e honestas, em contraposição com qualquer tipo de comunicação que se possa eventualmente ter com gente que mistura religião com nacionalismo e populismo. Durante meio século, acalentei o grande sonho de conseguir reunir todas as pessoas que acreditam em Cristo; porém esse sonho desfez-se em fumo.
Há diferenças que considero insuperáveis. E não se trata de diferenças entre as várias Igrejas, mas sim dentro delas. É óbvio que me é impossível caminhar lado a lado com pessoas que, sem nenhuma hesitação, afirmam que Deus criou o mundo em seis dias, que Moisés é o autor dos cinco livros mosaicos incluindo as passagens sobre a sua própria morte ou ainda que escavações no Monte Ararat tenham posto a descoberto os restos da Arca de Noé. E também me é impossível lidar com aqueles que se opõem à ordenação das mulheres alegando que Jesus não integrou mulheres no seu grupo de apóstolos, esquecendo que tampouco escolheu um gentio, isto é um não circunciso como nós. Seguindo esta lógica será que os não judeus podem ser ordenados sacerdotes?
Também há muitas pessoas que parecem igualmente ignorar que a proclamada vitória dos grupos pró-vida polacos e a subsequente criminalização do aborto levaram a promover o chamado “turismo do aborto” para a Eslováquia e para a República Checa. Quer isto dizer que a decisão do governo polaco acabou por não contribuir para a protecção do nascituro falhando assim o objectivo de terminar com o flagelo do aborto. Dito isto pergunto: pois não se tornou evidente que muitas das manifestações consideradas pró-família pouco ou nada têm a ver com esse objectivo?
Na realidade, as ditas manifestações são contra os homossexuais que, na Polónia, não gozam de qualquer direito e são frequentemente agredidos. A Polónia é, hoje em dia, o país europeu com o maior e mais rápido processo de secularização em curso. Na eventualidade de alguns bispos apoiarem acriticamente este governo nacionalista e autoritário, que de forma cínica e abusiva utiliza os valores cristãos para alcançar os seus objectivos, então esses bispos serão considerados cúmplices no processo que conduziu ao desencanto da sociedade católica polaca, sobretudo das gerações mais jovens. Se tal acontecer, a Polónia católica que conhecemos, tal como já aconteceu com a católica Irlanda, terá os dias contados.
Tem-se vindo a verificar que, hoje em dia, para um crescente número de cristãos nossos contemporâneos, a fé é vivida como se tivesse sido esvaziada do seu conteúdo positivo. Consequentemente, precisam de fundamentar a sua “identidade cristã” em guerras culturais contra o uso dos preservativos, contra o aborto e também contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O Papa Francisco, pelo contrário, demonstrou uma grande coragem quando, falando das convicções desta reduzida e negativa franja do catolicismo, as considerou como consequência de uma “obsessão neurótica”.

Parece-me evidente que não será este o motivo que me fará abandonar a Igreja na qual, bem pelo contrário, continuarei a encontrar, à roda da mesma mesa eucarística, pessoas com pontos de vista e convicções morais semelhantes. Tenho plena consciência de que sou um ser humano como os demais e, portanto, sujeito a errar. No entanto, debato-me com uma enorme dúvida: não será porventura este o momento de abandonarmos o ideal de um ecumenismo para “todos os cristãos” e passarmos a concentrar toda a nossa energia aprofundando um ecumenismo frutuoso, isto é, partilhando sinergias e um recíproco enriquecimento entre pessoas que pensam livremente, sejam elas crentes ou não-crentes? Será mesmo necessário continuar a perder tempo e energia em frustradas tentativas de estabelecer um diálogo com pessoas que, alteradas, se põem na defensiva mal ouvem mencionar a palavra diálogo, mesmo que possamos entender o motivo subjacente a essa rejeição?
Há uns quantos anos já um alto representante da ala mais conservadora da Igreja Checa pregava contra a União Europeia que colocava, juntamente com a homossexualidade, na lista dos inimigos da verdadeira Igreja Católica. Hoje em dia, as pessoas com esta mentalidade encontram apoio num sector da hierarquia católica que, para atingir os seus objectivos, colocou alguns dos seus membros nas várias direcções dos meios de comunicação checos. Por sua vez, na Hungria e na Polónia, estes aderentes da denominada “democracia iliberal” (mero eufemismo para um estado autoritário e repressivo), estão progressivamente a eliminar a liberdade e a independência da imprensa, da justiça, das organizações não governamentais e das universidades.
Estou horrorizado com a situação na Polónia onde um político irresponsável, apoiado e elogiado por um determinado grupo de bispos, desencadeou uma guerra cultural capaz de vir a destruir a autoridade da Igreja, um facto que poderá ter repercussão ao longo das próximas gerações. Simultaneamente, bastou que o Papa explicasse às mulheres polacas, com a caridade sensata que o caracteriza, que a Igreja não considera que o único caminho para ultrapassar o aborto (e o consequente e inevitável “turismo do aborto” em direcção a países vizinhos) não consiste na sua criminalização. Pelo contrário uma medida adequada passa necessariamente por uma legislação que proteja os direitos das mães solteiras.
Houve um sector do clero polaco que anos a fio foi sistematicamente perseguindo “o carácter demoníaco da homossexualidade e do liberalismo, considerando-os piores do que o comunismo”. Na verdade, acabaram por criar um “demónio” que agora os persegue e ameaça. Consequentemente, nas ruas por onde há trinta anos o Papa polaco foi aclamado por uma multidão constituída sobretudo por mulheres (que sempre foram o principal sustentáculo da Igreja), hoje poderão ver-se cordões policiais a proteger determinadas igrejas da fúria de centenas de milhares de jovens polacas. O que demonstra quão perigoso é invocar demónios e atiçar as chamas destrutivas do medo e do ódio.

Sim, rezamos todos o mesmo Pai Nosso e o mesmo Credo. Admito que neste ambiente se possa eventualmente encontrar pessoas boas e honestas; contudo temo que estejamos a viver em universos paralelos. Ao escutar o tom apocalíptico, usado num determinado sermão acerca deste nosso mundo depravado, desprovido de qualquer centelha evangélica, de fé, de amor, de caridade e de esperança e, para mais, pronunciado por alguém que não tinha a desculpa de ser pouco inteligente, perdi a convicção de partilhar a mesma religião com gente detentora deste tipo de mentalidade, ainda que, de um ponto de vista formal, continuássemos a pertencer à mesma Igreja.
Concordo inteiramente com as palavras do cardeal [Carlo Maria] Martini, um dos maiores líderes cristãos do século XX, quando afirmou que: “Não são as pessoas sem fé que me assustam. O que me perturba são as pessoas que não pensam. Na realidade dei-me conta de que a linha divisória entre pessoas que pensam e pessoas que não pensam não coincide com as diferenças existentes entre pessoas educadas e pessoas iletradas. Por isso o meu apelo não é em prol de uma religião elitista para intelectuais. Porque a diferença não se coloca a este nível, mas sim noutro, bem mais profundo, dado que reside no íntimo do coração das pessoas.
Sinto-me em sintonia com todas as pessoas que aderem ao conhecimento científico em todos os domínios em que a ciência é competente, sem por isso deixarem de levantar questões profundas de ordem ética e espiritual. O trilho que separa o fundamentalismo religioso de um considerável número de cristãos, e o igualmente arrogante fundamentalismo dos militantes ateus, é geralmente estreito e exigente. Mas estou plenamente convencido de que percorrê-lo é, hoje em dia, a única forma que nos resta para seguir Cristo.
Talvez ainda nos seja possível evitar um cisma se seguirmos uma espécie de “Concílio Apostólico de Jerusalém” do qual temos conhecimento através dos Actos dos Apóstolos. Mas também se formos capazes de dividir tarefas. E assim, uns cuidariam das necessidades dos crentes que anseiam pelas certezas do passado, enquanto outros escutariam a voz de Deus nos próximos “sinais dos tempos”.
Muitas vezes me interrogo se não estaremos hoje a viver uma situação semelhante à que viveu o apóstolo Paulo. Refiro-me à sua decisão de deixar Tiago, Pedro e os outros veneráveis apóstolos continuar o seu magistério junto dos cristãos judeus (designação dada à Igreja de então e destinada a desaparecer) e orientar o emergente e corajoso cristianismo para além do estreito espaço judaico contemporâneo, conduzindo-o para o então oikoumene, um espaço com um contexto cultural completamente diferente. A missão de Paulo deu origem ao fenómeno a que hoje chamamos Cristianismo, fenómeno esse que, com grande probabilidade, antecipa e anuncia a coragem necessária para que sejam ultrapassadas as fronteiras com as quais nos temos vindo a deparar.
O que o Papa Francisco tem explicitado em todas as suas declarações – e não apenas nas mais recentes – é a sua profunda adesão ao espírito de uma tal compreensão do Evangelho e de uma tal atitude para com a criação e para com as pessoas, especialmente as que estão nas margens e que apontam de forma profética para o que poderá vir a constituir-se como o Cristianismo do futuro. A identidade do cristianismo não se radica no imobilismo, mas sim nos sinais do Espírito que trabalha na história, conduzindo os discípulos de Jesus ao âmago da Verdade, de um modo cada vez mais profundo.
Dito isto, não estou a defender um culto acrítico da personalidade e dos pontos de vista do Papa Francisco. Pelo contrário, aquilo que proponho é uma cultura de discernimento espiritual e de promoção daqueles valores que nos conduzem quer ao coração do Evangelho quer a uma resposta corajosa e criativa aos “sinais dos tempos”.

Tomáš Halík (n. 1948) é professor de filosofia e sociologia da religião na Universidade Charles/Carlos, em Praga e presidente da Academia Checa Cristã. Durante a era comunista, depois de ter sido secretamente ordenado padre, passou a trabalhar na chamada “Igreja do silêncio”. Recebeu o prémio Templeton e o doutoramento “honoris causa” das universidades de Oxford e Erfurt. Os seus livros estão traduzidos em vinte línguas, incluindo em Portugal, na Paulinas Editora, que disponibilizam uma edição electrónica deste texto a quem a pretender descarregar gratuitamente.
Tradução: Carmo Sennfelt; Revisão: Maria Luísa Ribeiro Ferreira
Agradecimento: Antoine Vivant
Edição: 7MARGENS
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