[xxi domingo do tempo comum ― a ― 2023]

[vendo a lua azul / enche-te de espanto ― / chave do compromisso © haicai e fotografia: Joaquim Félix]
1. Hoje comecemos por, em primeiro lugar,
nos debruçarmos numas seguras ‘guardas do terraço’,
isto é, sobre as palavras de S. Paulo,
à imagem da menina ‘observadora’ de Paula Rego (Watcher 1944).
Na breve passagem ― como se fosse uma medida de agosto ―,
Paulo começa por dar asas ao seu inebriado espanto.
Como ouvimos, ele precede as perguntas de exclamações.
A profundidade da riqueza, sabedoria e ciência de Deus,
e a insondabilidade dos seus planos e caminhos fascinam-no
de tal forma que o conduzem a perguntas de fundo.
Também a nós, quando cultivamos o assombro,
surgem perguntas espontâneas ― não necessariamente longas ―,
que nos arrebatam até ao louvor e à contínua gratidão.
Esse é o sentido da última súplica das Laudes deste dia:
«Ensinai-nos a contemplar as maravilhas que a vossa generosidade nos concede
― e fazei-nos viver todo o dia em ação de graças» (Liturgia das Horas).
2. Nos meses de verão, estação em que quase todos fazem férias,
vamos tendo mais tempo para deslocações ― praias, montanhas,
passadiços, monumentos, feiras, exposições, concertos, etc. ―
e encontros com familiares e outras pessoas que raramente vemos,
como as que chegam de outros países onde trabalham.
Por norma, são momentos que libertam o tempo livre
e conferem qualidade de vida também ao nosso «relentalizar»,
conceito desenvolvido por Frederico Dinis numa recente exposição.
3. Nas noites quentes, escaldantes como foram ao longo da semana,
imagino que houve quem se tenha dedicado a contemplar os céus,
a identificar as constelações, a seguir a rota dos aviões;
a entrever o voo dos noitibós-da-europa ao crepúsculo,
a ouvir os sons das cigarras e dos ralos, dos sapos e das rãs.
Talvez alguém tenha visto uma cadeia de satélites ‘Starlink’
e pensou: «Esqueceram-se de recolher os drones das JMJ!».
Ou então, durante o dia, a demorar-se nas formas e cores dos frutos,
das borboletas e dos insetos, ou de algum réptil.
Claro, sem esquecer a vizinhança ― casas e comunidades ― em festa.
4. Como é bela, por exemplo, a lua a crescer novamente,
para nos deliciar, no próximo dia 31, com a sua segunda ‘cheia’ do mês,
fenómeno que os astrónomos apelidam de «lua azul».
Estou persuadido de que também teremos ficado admirados
com a sonda espacial lançada pela Índia que, com sucesso,
poisou no polo sul da lua [cf. Missão “Chandrayaan-3”].
Esta referência não é para cair em derivas românticas saudosistas,
nem para desdenhar quaisquer feitiços da lua,
mas para avançarmos «sem medo / E com vontade»,
como canta Luís Represas, em «Ao Fim ao Cabo»:
5. Quando nos damos a momentos de contemplação
interrogamo-nos, se não com as mesmas perguntas de S. Paulo,
pelo menos teremos expressões de espanto semelhantes àquelas
que ainda ontem surgiram num salmo de louvor matutino:
«Senhor, nosso Deus,
como é admirável o vosso nome em toda a terra!
A vossa majestade está acima dos céus. […]
Quando contemplo os céus, a obra das vossas mãos,
a lua e as estrelas que lá colocastes,
que é o Humano para que vos lembreis dele,
o filho do homem para dele vos ocupardes?» (Sl 8, 1.4-5).
Sentindo-nos nesta imensa nebulosa, apetece-nos acrescentar,
afirmando a proximidade de Deus, como S. Paulo no Areópago de Atenas:
«nele vivemos, e nos movemos, e existimos» (At 17,28).
Até porque «sobre a terra, o reino já está misteriosamente presente» (GS, 39).
6. Este elogio da ‘contemplação’, como haveis de estar a pensar,
não é um despropósito, nem nos afasta do Evangelho.
É que, como bem adverte Byung-Chul Han,
no início do seu livro, Vita Contemplativa, citando Friedrich Nietzsche,
«cada vez nos assemelhamos mais àquelas pessoas ativas
que ‘rolam como a pedra’, segundo a estupidez da mecânica» (p.11).
Atendamos, pois, ao que ele escreve da ‘inatividade’, no primeiro parágrafo:
«Não é uma fraqueza, uma deficiência, mas uma intensidade,
que na nossa sociedade ativa e de desempenho não é salvaguardada nem apreciada.
Não temos acesso ao reino nem à riqueza da inatividade.
Esta é uma forma esplendorosa da existência humana,
que hoje empalideceu e se converteu numa forma vazia da atividade» (p.11).
7. Quando nos entregamos à inatividade, na forma de vida contemplativa,
somos como que conduzidos lenta e naturalmente ao ‘encanto’ e, por ele,
ao ‘ponto-de-exclamação’ que tonifica, como um gim, a nossa existência.
E, sim, tornamo-nos mais humildes e agradecidos.
Passamos a fazer outro discernimento da vida:
não apenas dos mistérios de Deus,
mas também do nosso próprio mistério.
Por certo, passaremos a cuidar das relações humanas
com uma outra ética de responsabilidade.
O mesmo se diga em relação à natureza,
para evitar os dramáticos incêndios que causam tantos danos,
inclusive feridos e mortos, como sucedeu no Havai e na Grécia.
E evitaremos entrar em escaladas bélicas,
como a que assistimos na martirizada Ucrânia,
com o recente derrube do avião que está ainda por explicar…
Eis porque nos alegra saber que o Papa Francisco está a pensar
numa segunda parte da Encíclica Laudato Si’,
que nos responsabilizará com mais desafios.
8. Nesta ótica, já demoradamente limpa,
podemos agora olhar para o Evangelho.
Não terá sido pela via da contemplação (e, portanto, da atenção)
que Jesus pediu aos seus discípulos para que contassem
tudo aquilo que as pessoas diziam dele?
Sem vida contemplativa, não há escuta.
Eles, os discípulos, escutavam opiniões diferentes.
O que é que, em nossos dias, as pessoas dizem de Jesus?
― Será que nós nos escutamos bem? ―
Estarão próximas de entender o plano de Deus para Ele?
Se nãos nos escutarmos sinodalmente,
será difícil sabermos também nós quem é Jesus
e qual é a Sua e a nossa missão.
9. Inúmeras vezes este texto evangélico foi ‘instrumentalizado’,
para, por um lado, ‘diminuir’ o que diziam as pessoas acerca de Jesus;
e, por outro, ‘exaltar’ a resposta de Simão Pedro…
sem o que Jesus lhe disse depois, quando o apelidou de «Satanás» (Mt 16,23).
E, mais, para consolidar uma interpretação de sublinhados ‘hierárquicos’,
focada na exaltação do ‘poder das chaves’ e na ‘rigidez-de-pedra’ da Igreja.
Olhamos para a pessoa de Pedro, por sinal padroeiro de Fragoso,
― aqui como em quase todos os lados com as chaves na mão ―
e não desejamos sacrificar nada ao seu delicado e exigente ministério,
nem fragilizar a Igreja de Cristo que, como Ele, deveria ser humilde.
Antes, sentimos que Pedro é como uma ‘pedra vulcânica’,
desejoso de receber o sopro do Espírito Santo nos seus poros.
E que o ‘poder’ é, como canta o salmista,
o serviço da bondade de Deus, que não nos abandona (cf. Salmo 137).
10. Por falta de bem entender o ‘poder das chaves’,
como ouvimos do Livro de Isaías (cf. Is 22,19-23),
foi retirada a Chebna, administrador do palácio real ao tempo de Ezequias,
a chave da casa de David, para ser conferida ao jovem Eliacim.
O poder não é para servir conveniências, na Igreja, na política e nas instituições.
Eis porque não é possível geri-lo ao sabor de ‘alinhamentos de interesses’,
como acontecia à mercê de Chebna, com alianças danosas,
ou, agora, com o aumento das nações no grupo dos BRICS.
Quanto a nós, sirvam as chaves para abrir a porta, que é Cristo,
como fez Pedro, fiel à sua vocação,
sem colocar ninguém indevidamente fora da Igreja.
Se há adultos que não o fazem segundo o reto sentido, como Chebna,
haja ― e há seguramente! ― jovens como Eliacim, que o praticarão
conforme o serviço do Messias, Jesus, filho de Deus, o salvador (cf. Jo 3,17).
«D’Ele e para Ele são todas as coisas.
Glória Deus para sempre. Amen» (Rom 11,36)

Joaquim Félix é padre católico, vice-reitor do Seminário Conciliar de Braga e professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa; autor de vários livros, entre os quais VERNA. Este texto corresponde à homilia do passado domingo, dia 27 de agosto, XXI Domingo do Tempo Comum na liturgia católica, 2023.