[Saborear os Clássicos - XIII]

A saudade, fundamento da literatura portuguesa (2/2)

| 23 Abr 2023

O saudosismo galaico-português

 

As raízes da cultura estão naquelas obras chamadas clássicas, obras cuja mensagem se não esgotou e permanecem fontes vivas do progresso humano.” (apresentação da colecção de Textos Clássicos da Fundação Calouste Gulbenkian)

 

Rosalía de Castro, poeta galega: “soidades amargas, / sospiros amantes”. Foto: Direitos reservados.

Rosalía de Castro, poeta galega: “soidades amargas, / sospiros amantes”. Foto © Direitos reservados.

 

Também na Galiza ressoa a soidade, nas poesias de Xohan Viqueira, Castelao, Rosalía de Castro e outros:

“Cantarte hei, Galicia, / teus dulces cantares, / que así mo pediron / na beira do mare. // Mimosa, soave, / sentida, queixosa, / encanta se ríe, / comove si chora. // Cal ela ningunha / tan dose que cante / soidades amargas, / sospiros amantes…” (Rosalía de Castro)

Na obra poética de Teixeira de Pascoaes, “a saudade identifica-se com o amor originário, vogando na procela do tempo e do espaço”, escreve Afonso Botelho.

“Vi chorar uns claros olhos / Quando deles me partia. / Oh! Que mágoa! Oh! Que alegria!” (mote de um vilancete, Luís de Camões, séc. XVI)

Já no aproximar da gesta dos portugueses que constitui as Descobertas, (fins do século XV e século XVI), a saudade é um fenómeno filosófico, segundo Afonso Botelho. Está profundamente relacionada com a Partida para terras desconhecidas, “por mares nunca dantes navegados”, no dizer de Camões. Torna-se um sentimento colectivo, vivido por um povo.

A ausência, tristeza, sublima o amor em fidelidade e lealdade, transformando-o paradoxalmente em afecto e em alegria. Por esse motivo, os portugueses são, desde bastante cedo, denominados “enamorados” visto que o amor está presente em todos os seus actos. Na verdade, como diz Afonso Botelho, “o coração possui também a sua maneira de saber”.

Além disso, a perspectiva da viagem, a descoberta de novas terras, a curiosidade aliada à alegria da chegada – quando esse facto acontece, no meio de tanta tragédia – transformam o significado da saudade.

 

“O Leal Conselheiro”: o prazer e a folgança

 

Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa: a perspectiva da viagem, quando acontece, no meio de tanta tragédia, transformou o significado da saudade. Foto ©  portuguesegravity / Unsplash

 

Na obra O Leal Conselheiro, de D. Duarte (1391-1438), o rei filósofo, pertencente à Ínclita Geração, refere-se que no período “das descobertas a haver… o prazer e a folgança” da novidade alteraram os sentimentos.

Segundo D. Duarte, a saudade é devida ao afastamento, mas o desejo é sublimado pela razão, pela inteligência e pela arte.

A perspectiva da viagem, a descoberta de novas terras, a curiosidade aliada à alegria da chegada – quando esse facto acontece, no meio de tanta tragédia – transformam o significado da saudade.

Estamos perante a ideia da viagem como aprofundamento do conhecimento de si mesmo e de todo um povo, presente, como já desenvolvido noutro texto, na epopeia camoniana. [ver 7MARGENS]

“Existir cria a ilusão do tempo. O que passou, o que há-de vir, eis a matéria, o corpo da saudade. O eterno compõe-se de coisas transitórias.” (Teixeira de Pascoaes)

Concluindo: embora o termo saudade exista noutras línguas, a verdade é que este vocábulo apresenta uma vivência excepcional na história e cultura portuguesas.

Por outro lado, o conceito altera-se ao longo do tempo, como vimos.

No início do século XX, o poeta Teixeira de Pascoaes e o filósofo Leonardo Coimbra deram um grande contributo para a definição da saudade, integrando-a nos sentidos humano e divino.

 

Qualidades e defeitos de um povo

 

Teixeira de Pascoaes, António Carneiro

Teixeira de Pascoaes: a descrição incompreendida do “ser português”. Desenho de António Carneiro (1872-1930) / Wikimedia Commons

 

Pascoaes, na obra Arte de Ser Português, escreve poeticamente o que é “ser português”, mas não foi compreendido… nem lido! Dedicou o livro “à Mocidade” e as suas palavras ainda não envelheceram. Antes pelo contrário.

Qualidades:

– “Génio de Aventura”: referência ao período das Descobertas. Há em nós espontaneidade… mas devemos educá-la… a uma disciplina concordante;

– “Espírito Messiânico”: espera de um “salvador”, mas este espírito torna os portugueses passivos, à espera eternamente. Num poema de F. Pessoa, da Mensagem, está escrito:

Cumpriu-se o Mar e o Império se desfez. / Senhor, falta cumprir-se Portugal.

Sentimento de Independência e de Liberdade”:  muito bonito, mas sem actividade criadora não há liberdade nem independência.

 

Defeitos:

– “Falta de Persistência”: Ela aparece em todas as manifestações da nossa actividade, a cada passo interrompida ou abortada, o que a torna tristemente caricatural.

– “Tristeza”: a vil tristeza, de que fala Camões; a saudade cadavérica, sem alma e corpo, dentro de um caixão.

– “Inveja”: a vil tristeza apagou-nos o carácter, o dom de ser. Somos fantasmas querendo iludir a sua oca e triste condição.  

– “Vaidade susceptível”: um Povo foi grande e decaiu. Inferior e pobre, considera-se ainda possuidor dos bens arruinados.

– “Intolerância”: uns prometem a Liberdade, os outros prometem Deus… conseguem ter obediente a eterna criança ludibriada – o Povo.

– “Espírito de Imitação” – quando o carácter adoece e se dilui, é natural que o espírito de iniciativa dê lugar ao imitativo e simiesco.

 

(A seguir, o vídeo de Cesária Évora a cantar Sodade🙂

 

 

Notas:

Foram consultadas as seguintes obras: Rosalía de Castro, Poesías, Cantares Gallegos; Afonso Botelho, Da Saudade ao Saudosismo; Teixeira de Pascoaes, Arte de Ser Português.

O primeiro texto com este título pode ser lido noutro artigo do 7MARGENS.

 

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