
Imagem do filme Senhora da Serra, de João Dias. Em Lisboa, será possível vê-lo no dia 13, na Cinemateca.
O espaço é curto e o que se podia dizer muito. Retraia-se o escriba e sintetize: quem puder que vá à Cinemateca ver dia 13 de setembro (às 19h) A Senhora da Serra, filme de João Dias, apresentado no Fundão, na 13ª edição dos Encontros Cinematográficos, que decorreram na Moagem de 11 a 14 de agosto. O filme dura 67’ e convém chegar a horas. O tempo de visão é muito superior ao da projeção; exige-se uma concentração absoluta ao que se passa na tela. A densidade é tal que de certeza ao espetador escapará o sentido de uma aqui outra ali frase dos diálogos. Não desespere nem volte atrás no pensamento, siga as imagens, elas explicam-lhe o que não entendeu. O que não pode perder mesmo é o filme – som e imagem.
Um dos comentadores do filme, Sérgio Dias Branco, realçou o papel que a estética desempenha na construção do enredo e da minha parte julgo mesmo que é ela que significa a moral de tudo o que decorre na ação da Senhora da Serra – um universo panteísta que se explica por si próprio, o que quer dizer singelamente que não se explica, dentro do qual se desenrolam dramas humanos, onde carne, alma, sangue e ser se jogam entre si, se eliminam e se reconstroem.
Nos idos de 1960, quando a nouvelle vague pôs fim aos dramalhões dos salões burgueses e trouxe a câmara para rua, designava-se este tipo de argumentos de “filmes de tese”. O autor, João Dias, retoma essa abordagem, o que implica que o filme seja uma “obra completa” – da representação à imagem, da retórica ao cenário, tudo se conjuga. Daí que a concentração seja indispensável, pois o espectador também faz parte do filme. Se o leitor ainda tem uma recordação de O Evangelho Segundo Mateus, de P.P. Pasolini, tem aqui nesta Senhora que passou pela Gardunha uma parente, afastada, certamente, que esta aparece-nos pelo meio dos arbustos e fragas, enquanto a Maria do evangelho resplandecia a preto e branco em campos de terra macia.
Não há subterfúgios narrativos nem truques de câmara – o roteiro, como se escreve na ficha técnica, que passa no final, vai de Guerra Junqueiro a Álvaro Cunhal. Estão lá os referentes intelectuais, mas o que eles dizem no filme é reinterpretado pelo realizador, que recorreu à retórica greco-romana para colocar os seus títeres a repetir no estatuto respetivo o papel que lhes foi dado. Personagem de voz própria há a Senhora, que interroga o ermita, o comité político-leninista e também o ladrão sobre que caminho pode haver para a humanidade que nasce da sua fonte de vida – e num tenebroso aviso também pode secar-se para sempre.
Muito há a dizer sobre o filme e já se percebeu que a sua dimensão filosófica o torna agradavelmente tema de especulação. Convém, por isso, ir vê-lo em grupo e discuti-lo no final.
Boa projeção, é o que desejo.

[Notas sobre João Dias]
1. Descobertas vocacionais: Edgar Pera, Pedro Costa, Saal (experiência c/ Abel Ribeiro Chaves, produtor e montagem do doc num 2º andar de um prédio aos Restauradores – cf. [As Operações SAAL @ CinePT-Cinema Portugues [pt] (ubi.pt) – João Dias filme – Procurar (bing.com) ] “o Pêra tinha muito mais uma relação com um cinema directo vertoviano, do cine-olho e da manipulação na montagem. Havia uma coisa que ele dizia quando íamos filmar a um sítio qualquer, e que eu acho maravilhosa: «Entramos já com a câmara em punho, a filmar!». Portanto, ninguém entra com a câmara baixa a pedir licença. Não! Perguntam depois, se surgirem problemas. Entramos a filmar. Com o Costa as coisas não funcionam assim, há um trabalho de antecipação. Uma coisa extraordinária, e que posso afirmar em relação aos filmes que montei com o Pedro, é que não há planos filmados que estejam fora do filme.”” Pensar que esta é a minha última casa e que vou ficar aqui até ao fim dos meus dias, é uma ideia que traz imensa alegria, esperança, confiança, e uma vontade muito grande de… começar outra vez” (Será?)
2. Conceito: Educação pela Pedra de João Cabral de Melo Neto [A Educação Pela Pedra | Resumos de livros | Literatura | Educação (globo.com))] –
A educação pela pedra – João Cabral de Melo Neto
Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, frequentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.
A educação pela pedra : João Cabral de Melo Neto – Poetisarte
“O projecto inicial do filme imaginava um encontro entre a Senhora da Serra e o Cireneu. Este encontro era um ponto de partida para uma discussão em que as personagens seriam representantes de duas ortodoxias muito diferentes. Esta premissa do confronto entre ortodoxias mantém-se no filme, mas a personagem do Cireneu desapareceu, e a própria personagem da Senhora da Serra é já o resultado de uma reinvenção muito livre”
Título: A Senhora da Serra
Realizador: João Dias
Portugal, 2023, 68 min.
Cinemateca Portuguesa, 13 setembro, 19h.
António Melo é jornalista.