
Lula com os yanomami: “O garimpo está matando” os indígenas. Foto © Ricardo Stuckert/Palácio do Planalto.
A situação desoladora na qual os Yanomami foram encontrados foi notícia no Brasil e no mundo.
No dia 20 de janeiro, o Ministério da Saúde decretou emergência de saúde pública para enfrentar a grave crise de saúde e desnutrição de um dos maiores povos indígenas da América do Sul. No dia 21, o presidente Lula (PT) visitou a Casa de Saúde Indígena Yanomami acompanhado de sete ministros, entre eles a da Saúde, Nísia Trindade, Sonia Guajajara, dos Povos Indígenas, e Silvio Almeida, dos Direitos Humanos. O Presidente declarou: “Se alguém me contasse que em Roraima tinham pessoas sendo tratadas dessa forma desumana, como vi o povo Yanomami aqui, eu não acreditaria. O que vi me abalou. Vim aqui para dizer que vamos tratar nossos indígenas como seres humanos.”
O avanço do garimpo ilegal é a principal causa da tragédia vivenciada pelos Yanomami. No dia 1 de fevereiro, Uol Notícias divulgou uma pesquisa realizada pelo ISA (Instituto Socioambiental) em parceria com a HAY (Hutukara Associação Yanomami). A pesquisa aponta que o garimpo ilegal cresceu 54% na área indígena Yanomami no último ano do governo do ex-Presidente Jair Bolsonaro (PL). A incerteza da reeleição de Bolsonaro gerou, como aponta a reportagem, uma “corrida pelo garimpo”, uma tendência de “partir para tudo ou nada”, tendo em vista que uma das promessas eleitorais do presidente Lula é priorizar, justamente, maior fiscalização das reservas indígenas.
Joênia Wapichanaa (Rede), a primeira pessoa indígena a ocupar a presidência da Funai (Fundação dos Povos Indígenas), foi relatora da Comissão Externa criada para investigar a situação dos Yanomami em Roraima. Em relatório apresentado à Câmara dos Deputados em novembro de 2022, ela destacou a ameaça do garimpo ilegal na região e seus riscos para a saúde da população indígena, para o meio ambiente e os direitos humanos. Joênia recomendou, ainda, uma política permanente de fiscalização. Mas, em recente entrevista à CNN, ela apontou que, embora o Governo estivesse ciente da situação dos Yanomami, não houve interesse de investigar e determinar ações de socorro humanitário e estancamento dos problemas da população. Além das contingências orçamentárias durante a gestão do ex-Presidente Jair Bolsonaro, os desvios de recursos impediram que doenças, como aquelas advindas da contaminação pelo mercúrio do garimpo, fossem tratadas.
Os garimpeiros continuaram a tornar a terra improdutiva, fazendo com que os Yanomami sejam vítimas da insegurança alimentar e, uma vez que os deixassem vulnerabilizados, ofereciam a eles comida em troca de suas filhas e irmãs: “Vocês não peçam nossa comida à toa! É evidente que você não trouxe sua filha! Somente depois de deitar com tua filha eu te darei comida. Se você tiver uma filha e a der para mim, eu vou fazer aterrizar uma grande quantidade de comida que você vai comer! Você se alimentará!” Esta é uma das fala dos garimpeiros que constam no relatório “Yanomami Sob Ataque”, produzido pelas associações Hutukara e Wanasseduume Ye’kwana e publicado em abril do ano passado.

Em toda essa criminosa e dolorosa situação, chamou-me a atenção o envolvimento de uma ONG evangélica. Em uma reportagem publicada na terça-feira (24) pelo O Globo, o jornalista Alvaro Gribel expôs que, sob a gestão de Bolsonaro, foram destinados R$ 6,13 bilhões [mil milhões] ao Programa de Proteção e Recuperação da Saúde Indígena, sendo utilizados R$ 5,44 bilhões [mil milhões]. Foi a ONG evangélica Missão Caiuá que recebeu a maior fatia desse montante, cerca de R$ 872 milhões. Estava previsto que R$ 52 milhões seriam destinados à população Yanomami somente em 2022. Mas, como visto e, inclusive denunciado pela então parlamentar Joênia Wapichanaa, os recursos foram desviados. Segundo a reportagem, outras lideranças indígenas denunciam que o dinheiro foi gasto em contratações de aviões e helicópteros para agentes da ONG Missão Caiuá e para médicos e enfermeiros somente para atendimentos de emergência, quando os problemas de saúde já não podiam mais ser tratados. Além disso, os aviões e helicópteros contratados pertenciam a garimpeiros. Sem plano de prevenção e tratamento da saúde dos Yanomami, a ONG é atualmente responsável por cerca de 64% dos atendimentos em saúde indígena. Não se pode negar, portanto, que um sistema de corrupção envolvendo o governo do ex-Presidente Jair Bolsonaro, garimpeiros e a ONG Missão Caiuá estava em curso, e que sua magnitude foi capaz de promover o genocídio dos Yanomami. Também não é de se duvidar que esses agentes da corrupção tinham por intento lucrar não apenas com a morte de corpos indígenas, mas também com a destruição da alma dos povos originários. O lema da ONG Missão Caiuá “A serviço do índio para a glória de Deus” é no mínimo enganador. Mas o que se pode esperar quando sua missão fundamental, ainda que não a mais verdadeira, é evangelizar e converter indígenas fazendo uso do termo, notoriamente colonizador, “índio” para denominá-los? Ou seria dominá-los?
Nota: O ex-Presidente Jair Bolsonaro, desde quando ocupava o cargo de deputado federal, se manifestava de forma contrária à demarcação de terras indígenas. Foram inúmeras as ocasiões em que ele desdenhou e falou, preconceituosamente, sobre os povos originários do Brasil, desde “quase comi um índio uma vez” até “cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós”. Durante uma fala no clube “A Hebraica” do Rio de Janeiro, em 2017, Jair Bolsonaro disse: “Onde tem uma terra indígena, tem uma riqueza embaixo dela. Temos que mudar isso daí. Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem pra procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão [mil milhões] por ano é gastado com eles”. Não há dúvidas de que quando assumiu a presidência, Jair Bolsonaro colocou em ação seu projeto criminoso de destruição da população e reservas indígenas.
Maria Angélica Martins é socióloga e mestra em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil. Pesquisa a relação entre fenómeno religioso e política com ênfase para o protestantismo histórico e o neocalvinismo holandês.