Na intervenção que foi convidado a fazer na conferência sobre os abusos sexuais de dia 10, o jornalista João Francisco Gomes teceu várias críticas ao modo como a Igreja Católica se relaciona com os média em Portugal. Depois de ter publicado esse texto na íntegra, e também tendo em conta a proximidade do Dia Mundial das Comunicações Sociais, que a Igreja Católica assinala neste domingo, 29, o 7MARGENS convidou vários jornalistas que têm acompanhado a informação religiosa com alguma regularidade a escrever um depoimento sobre o tema. A seguir, o contributo de Aura Miguel, jornalista da Rádio Renascença que tem acompanhado as viagens papais.

A jornalista Aura Miguel à conversa com o Papa, no voo para a Bulgária, em 2019. Foto cedida pela autora.
Há “uma surdez interior pior do que a física”, avisa-nos o Papa, porque “a escuta não tem a ver apenas com o sentido do ouvido, mas com a pessoa toda”. Se quem pergunta e quem responde procura uma comunicação verdadeira, então, é preciso “reaver a escuta de si mesmo, das próprias exigências mais autênticas, inscritas no íntimo de cada pessoa”.
As palavras de Francisco aplicam-se aos dois lados da comunicação e põem o dedo na ferida: “Para fornecer uma informação sólida, equilibrada e completa, é necessário ter escutado prolongadamente. Para narrar um acontecimento ou descrever uma realidade numa reportagem, é essencial ter sabido escutar, prontos mesmo a mudar de ideia e a modificar as próprias hipóteses iniciais”.
Na minha longa experiência de 37 anos de jornalista, esta questão é decisiva mas dificilmente verificada, quer de um lado, quer do outro dos protagonistas da comunicação. É que comunicar é muito mais do que trocar dados e informações, é ajudar a conhecer melhor a realidade e ter a coragem de sair de si e alargar horizontes de conhecimento e vida, ao ponto – se necessário for – de mudar de atitude e mentalidade. No fundo, é amar mais a verdade do que a ideia que se tem dela.
A própria Igreja, portadora de uma milenar sabedoria humana, é chamada a dar o exemplo; mas por que será que, em geral, a sua comunicação é pouco atrativa? Tantas vezes, como repórter, esbarro com discursos preparados e respostas feitas a partir de planos pastorais que não comunicam grande coisa da realidade concreta. Outras vezes, predomina um certo desinteresse pela nossa missão, por vezes disfarçado em conversa afectiva quando, na verdade, o que precisamos é de esclarecimentos e razões sobre os assuntos em notícia.
Do outro lado “do diálogo” estamos nós, mergulhados na voragem informativa, sempre a perguntar e à procura de novidades. “Olha a nossa coscuvilheira”, dizia-me com amizade e sentido de humor um idoso bispo emérito, sempre que me via de microfone na mão, incentivando (à sua maneira) a minha curiosidade, ao contrário de outros prelados que nem sequer me cumprimentavam.
Do lado dos jornalistas, também sabemos que nem sempre o espaço do entrevistado é respeitado e que quase nunca o fim (de obter notícias ou ganhar audiências) justifica certos meios. Tantas vezes corremos o risco de partir para uma entrevista com uma ideia feita, sem esperar nada daquele encontro, nem prestar atenção às razões do outro, sobretudo, quando não coincidem com as nossas.
Uma vez, atormentada com tantos “monólogos a duas vozes” à minha volta, perguntei diretamente ao Papa João Paulo II, numa conversa privada a bordo do avião papal, o que me aconselharia para ser boa jornalista. E ele, após uma breve pausa de reflexão, respondeu: “É preciso discernir sempre.” De facto, o acto de discernir é saber pensar pela nossa cabeça (sem ceder a pressões do “toda a gente faz”), é ter a liberdade de encarar a realidade segundo a totalidade (e não apenas alguns) dos seus favores, é “avaliar tudo e retirar o que é bom”, como já aconselhava o apóstolo Paulo, para depois comunicar.
Conhecedor como ninguém da natureza humana, o Papa Francisco propõe-nos, na mensagem deste ano, pedir a Deus “um coração que escute” para se ouvirem as várias vozes – inclusive na Igreja – e assim podermos “exercitar a arte do discernimento que se apresenta sempre como a capacidade de se orientar numa sinfonia de vozes”. Esta advertência implica uma disponibilidade de todos à conversão, convida os protagonistas da comunicação a saírem da sua auto-referencialidade (clerical e jornalística), sob pena de a verdade sinfónica, que todos desejamos transmitir, continuar desafinada.
Aura Miguel é jornalista da Rádio Renascença e tem acreditação permanente na Sala de Imprensa da Santa Sé.