
Questionários para o Sínodo 2023 da Diocese de Leiria-Fátima. Foto © Diocese Leiria-Fátima.
Atrevo-me a escrever estas crónicas contra o aviso terno da minha mulher: não faças isso, ficas conhecido como o tipo cáustico de mau feitio, que é sempre do contra. Mas se não faço isso, faço o quê, fico a olhar?
Preâmbulo. Confesso-me pessimista. Sempre o fui toda a minha vida, sempre interpretei a vida com um sentimento de que tudo poderia ser diferente e melhor. Atribuo esse pessimismo ora à lucidez, ora à falta dela. Possivelmente, por isso, terei desiludido terceiros, família, colegas, amigos. A eles, as minhas desculpas.
Relativamente ao processo sinodal da Igreja Católica, quer parecer-me que o meu pessimismo não está sozinho. Confesso que nele não me tenho empenhado (quase-quase) nada quer por indolência, quer por uma descrença inicial muito interiorizada, em que ambos os termos se alimentam mutuamente.
Julgo não estar isolado, já de tantos lados surgem suspiros de desalento. Por mais que o 7 MARGENS estoicamente se esforce em dar nota de tantas reflexões e ideias originárias das comunidades, sobretudo paroquiais (já agora, uma igreja confundida com paróquias sempre me pareceu uma grande limitação), percebemos que os filtros institucionais funcionam demasiado bem e que elas parecem condenadas à menorização, como se fossem apenas exteriorização de tristezas conjunturais ou a manifestação de ideias marginais e peregrinas (donde virá esta expressão?) quando são, de facto, emanações directas da vida cristã que pedem honesta e justamente mudanças na organização eclesial, no modo de a Igreja estar no mundo, nas celebrações litúrgicas, na reflexão sobre os temas da actualidade. Querem ser ouvidos e contribuir para o futuro, dois aspectos que parecem ser insuportáveis para a Igreja institucional. O magnífico e corajoso artigo de Jorge Wemans confirma-me esta ideia.
Na minha condição de cristão teologicamente não instruído (que, como verão, não me inibe o atrevimento), ainda que razoavelmente habilitado a interpretar as organizações humanas, vejo aquela tensão que se avoluma entre o imobilismo e a vontade de ser e fazer como a manifestação do confronto entre dois modelos de igreja.
Dois modelos de igreja. Esses modelos são o de uma igreja administrativa e funcionalista que se cristalizou no dogmatismo e nas regras, vivendo exacerbadamente para elas; e o de uma igreja dos valores evangélicos, aos ziguezagues na história, tendencialmente marginal, que procura uma relação com o mundo e se lhe oferece.
Procurando densificar.
A igreja administrativa auto-concebe-se como uma estrutura regida hierarquicamente por normativos imperativos, a que o mundo deveria adaptar-se e obedecer; daí ser autoritária e soberba, imitando a administração napoleónica estadual (de outros tempos mas que, infelizmente, permanece estruturante da sua vetustez), por isso convertendo-se rapidamente em fonte de legitimação e de sustentação das tendências políticas conservadoras (dizia recentemente Luís Osório que “a Igreja Católica foi ‘uma apoiante histórica de quase todas as ditaduras ou projectos autoritários de extrema direita’, sem que consigamos negar a triste evidência) A exacerbação institucional torna-se uma ferramenta de controlo e dominação ideológica. À igreja administrativa interessa-lhe pouco os sinais dos tempos porque o mundo e as pessoas são-lhe secundários; os seus eixos identitários que modelam a organização e seu funcionamento são as regras e o exercício do poder que, percebemo-lo tantas vezes, se exerce à revelia do evangelho, se não mesmo contra o evangelho, ainda que em seu nome. Esta igreja não é um instrumento, mas uma finalidade. É ainda impossível ignorar como é dramaticamente misógina e classicista, e – pior! – se sente bem com isso.
Em tal ecossistema, não admira que os membros do clero surjam frequentemente como funcionários do culto, a que não deverá ser indiferente a impreparação teológica. Consequentemente, a liturgia que encontramos em tantas paróquias (e seguramente nas terríveis transmissões televisivas), é a de um ritual dominical rígido, em geral de mau gosto estético e temporalmente desajustado, que parece imune à vida concreta dos crentes e ainda mais ao mundo exterior.
Em resumo: esta igreja ritual é um grande juiz aferidor da ordem estabelecida, alicerçada na visão de um Deus fiscal e ameaçador, não na de um Deus misericordioso e do amor que sofre com a humanidade dos seus filhos.
As consequências deste rumo eclesial são já conhecidas: perca acentuada de credibilidade e de atracção, tendência para a irrelevância orgânico-institucional, e enfraquecimento intelectual e espiritual dos crentes cada vez mais impreparados para lidar com o mundo a partir de um sistema de valores religiosos fortemente ideologizado e desajustado da realidade.
Por seu lado, a igreja dos valores é um ensaio inacabado de tentar ser mais fiel ao Evangelho, que pretende que seja mais central no seu pensamento e actividade; por isso, parece mais preparada para anunciar Deus, desde logo porque na leitura da realidade entram não apenas factores ideológicos, mas outras lentes. Por exemplo, nela, a caridade e a misericórdia subsistem como ideias e práticas fulcrais, mas transfiguram-se numa solidariedade que é enquadrada por uma visão social da pobreza e das dificuldades sociais. A encíclica Fratteli Tutti é um expoente actual desta visão evangélica, razão por que o funcionalismo eclesial se tem mostrado resistente à encíclica de Francisco (e, notoriamente, ao próprio Papa).
A igreja dos valores parece ser mais favorável à reflexão geradora de uma fé adulta que inclui mais as interrogações do que o absolutismo das certezas, pois é na inquietação que reside o Espírito. Mostra-se tendencialmente mais inclusiva e permeável à participação de todos, à igualdade dos membros do povo de Deus, ao diálogo interno e externo com o mundo a que pertence e que visa servir. Acolhe mais do que exclui (mulheres, LGBT+, divorciados não são problema – de resto, porque estranhíssima razão o seriam?) enquanto tem mais uma atitude de procura do que de rendição ao establishment, razão por que é menos ideológica e mais democrática (será um paradoxo?) e plural. Só por esta razão já é mais sinodal.
Possivelmente é menos dogmática mas mais complexa, cosmopolita, solta, livre, dialogante e comprometida com a realidade. Pode sentir mais dificuldade em encontrar soluções organizativas – a paróquia territorial não precisa de ser necessariamente a sua base, cedendo espaço aos movimentos que agregam pessoas por interesses e vocações. Por fim, nela os padres não são funcionários do culto, não são gestores de coisas, mas pastores de pessoas – todas, independentemente do sexo, estatuto ou qualquer outra condição ou característica – que anseiam não por ser geridas, mas sim guiadas na fé por quem saiba de teologia e de relação humana. E, por isso, imagino nesta igreja uma liturgia participada como celebração da fé e de trajectos comuns, mais do que um rito obrigatório.
Resumindo: esta visão de igreja está mais próxima da fórmula a Igreja é para o mundo e não o mundo para a Igreja.
Os modelos somos nós. Evidentemente que estes dois modelos de igreja – a que subjazem diferentes leituras ou concepções do evangelho, éticas e o respectivo sistema de valores – não existem em estado puro em si mesmo e em cada um de nós; eles interpenetram-se dinamicamente, com o primeiro a ter expressões excessivamente aprimoradas que, como hoje bem o sabemos, tem levado a toda a espécie de desvarios, e o segundo a ser um esforço algo errático de afirmação, enquanto experimenta continuamente a complexidade de ser menos institucional.
Também é claro que os dois modelos desgostam-se mutuamente. Daí que vejamos uma luta entre as duas igrejas, com a administrativa predominante a usar a sua blindagem histórica para resistir às tentativas de abertura e renovação da segunda. No meio, o Papa Francisco, pastorando sabiamente.
Se é certo que em qualquer destes modelos pessoas haverá que encontrarão os caminhos para o céu, o grande desafio a que todos temos que responder é: a qual dos modelos damos primazia nos nossos corações, nas nossas vidas, nas paróquias , movimentos e comunidades a que nos referenciamos, e qual deles queremos para a Igreja.