- “Em Ersília, para estabelecer as relações que governam a vida na cidade, os habitantes estendem fios entre as esquinas das casas, brancos ou pretos ou cinzentos ou pretos e brancos, conforme assinalem relações de parentesco, permuta, autoridade, representação. Quando os fios são tantos que já não se pode passar pelo meio deles, os habitantes vão-se embora: as casas são desmontadas; só restam os fios e os suportes dos fios.” Mas, conta Italo Calvino, só partem para reedificar Ersília noutro lugar, tecer aí “uma figura semelhante, que desejariam mais complicada”, pois sem a cidade “eles não são nada”.
- O apólogo significativamente intitulado As cidades e as trocas[1] designa o lugar de uma educação para a cidadania no sistema dos saberes que a escola alberga e transmite: mais uma prática do que uma soma de conteúdos ou matéria, mais um fazer e um agir com os outros do que um colher para si, mais uma vontade de complexidade do que uma resignada reiteração do mesmo.
- Retomando uma distinção que colhe no medievalista Jacques Le Goff, Richard Sennet conclui a sua notável trilogia homo faber com uma extensa reflexão sobre construir e habitar. Com efeito, Buildung and Dwelling. Ethics for the City (Penguin, 2018) abre com uma precisão conceptual sobre a diferença entre ville e cité. Se ville veio a representar o lugar físico, cité designava “o carácter da vida numa vizinhança, os sentimentos que as pessoas albergavam acerca dos vizinhos e dos estranhos e as ligações ao lugar”. Em síntese, o lugar onde vivemos é uma coisa, o modo como o habitamos, outra. Cité vem a designar um modo de consciência que se rebate sobre o edificado, conforma as expectativas dos citadinos/cidadãos e lhes proporciona ou subtrai uma anima (a força que mobiliza e impele à cooperação) e um carácter, “o padrão habitual de pensamento e acção (…) em matérias que afectam a felicidade dos outros ou da própria pessoa, e muito especialmente na relação com escolhas morais”[2]. De tal forma que podemos falar de cidades abertas e fechadas, do mesmo modo que o faria um Karl Popper.
- É da vida na Cidade, não da monstruosa autarcia de que falava Aristóteles, que se ocupa toda a educação digna desse nome. E se a Constituição da República Portuguesa e a Lei de Bases do Sistema Educativo estatuem direitos e liberdades fundamentais, uma concepção pluralista de sociedade e das instituições de governo e os valores centrais de uma educação liberal, é porque tanto os constituintes de 76 como os parlamentares de 86 sabiam que no cerne da democracia política estão a coexistência pacífica de distintas visões do mundo, do sentido da existência e dos fins da acção política, na discórdia, na diferença, mas também na escuta respeitosa, no argumento ponderado, no compromisso. E mesmo que o não soubessem então, os que, entretanto, por força de uma educação, se fizeram democratas foram aprendendo algo que o discreto John Rawls fixou definitivamente para ilustração e exemplo do nosso tão regressivo século XXI: instituições justas só subsistem no respeito pelo dever de civilidade.
- Aqui entronca, de par com a distinção entre o corpo físico da ville e a trama espiritual da cité, uma outra diferença que atinge o coração (se o não fere irremediavelmente) dos narcisismos identitários de todas as latitudes: a que separa a Gemeinschaft de um F. Tönnies da Geselschaft de um Habermas, de um Kant. A comunidade: mais ou menos sectária, hierárquica, ideologicamente coesa, ‘pura’, detentora de uma mundividência integral e, num certo sentido, definitiva (aqui pela ‘tradição’, o ‘costume’; ali pela ‘disrupção’, a ‘fractura’). A sociedade: plural, diversa, ‘impura’, obrigatoriamente aberta ao questionamento público e à pública partilha e escrutínio das razões, especialmente as que concernem a valores.
- O que parece distinguir essencialmente comunalização (Vergemeinschaftung) de agregação, ‘sociação’ (Vergesellschaftung), para utilizar expressões de Max Weber, é o carácter extra-judicativo, pré-reflexivo do impulso que conduz à formação da Gemeinschaft, um ‘estarmos juntos’ anterior e indiferente à sociedade, por oposição ao modo típico de regulação da sociedade política, Gesellschaft, na medida em que esta última supõe, desde logo, a existência de dispositivos institucionais que suportam o processo de “reconciliação” de “interesses” num “espaço público” constituído pela “mera justaposição de pessoas independentes entre si”, como sublinhou, em tom manifestamente depreciativo, Ferdinand Tönnies[3] .
- No caso que suscitou o abaixo-assinado “Em defesa das liberdades de educação”, e independentemente do tempo transcorrido entre a invocação da condição de objector de consciência pelo pai das crianças de Famalicão e a respectiva tramitação judicial e administrativa, talvez seja possível, para começo de conversa, tentar responder, serenamente, a duas simples perguntas:
- a) já foi feita, e em que instância, a demonstração de que, naquela escola e no quadro da concretização da respectiva estratégia de educação para a cidadania, os alunos são expostos a um discurso que viola direitos fundamentais, o que permitiria acolher a invocada objecção? (Note-se que isto é muito diferente de perguntar se as crianças ou seus pais “gostam” ou “não gostam” das tarefas, noções ou problemas que àquelas se propõem);
- b) em que ponto da discussão sobre o papel da família é que se torna possível advogar, tutelar e tratar separadamente, e por quem e/ou que instituições, o interesse e o direito de uma criança ou de um adolescente, precisamente na perspectiva, atrás referida, da superação do “calor” tantas vezes perigosamente anestesiante do vínculo comunitário[4], em nome de uma educação democrática, no cerne da qual está a abertura desperta e crítica à pluralidade de discursos (da ciência, das artes, da política, mas também de conteúdo mais explicitamente ético, moral e religioso) que atravessam a escola e a sociedade?
João Santos é professor
Notas
[1] Calvino, I. (1993). As cidades invisíveis, Teorema.
[2] Kupperman, J.J. (2005[1999]), Virtues, character, and moral dispositions, in Carr, D. & Steuel, J., Virtue ethics and moral education, Routledge.
[3] cf. Braga da Cruz, M. (2001) Teorias Sociológicas: os fundadores e os clássicos I, FCG.
[4] Francisco Bethencourt, no artigo Os direitos das crianças, Público, 24.9.20, cita o caso de Tara Westover; em registo ficcional, Ian McEwan, no romance The Children Act (2014) relata a agonia de Adam Henry. Não são poucas as crianças tornadas meros figurantes numa história de adultos que lhes é alheia e contrária ao seu melhor interesse.