Cinema

A Via Sacra de um Burro

| 7 Abr 2023

EO, filme de Jerzy Skolimowski. Foto de promoção do filme.

EO, filme de Jerzy Skolimowski. Foto de promoção do filme.

 

Para os que, como nós, temos um burro no Presépio a aquecer o Menino e outro que carrega Jesus na sua entrada pascal em Jerusalém, este é um filme muito sugestivo e simbólico. Falo de EO (uma onomatopeia correspondente ao nosso hi hon), o último filme-metáfora-fábula de Jerzy Skolimowski. Como alguém escreveu, “é um filme para ser visto, não para ser contado”, pois é um filme sem história. Um filme que nos vai dando a ver fragmentos e situações do nosso mundo e da nossa sociedade, através do olhar de um burro. Falo de situações que têm a ver com violência, maus-tratos, assassinatos, questões ecológicas. É a Via Sacra de um burro que nos vai “dizendo” o que vê e o que pensa. O nosso mundo pelo olhar de um burro. E não é muito bonita nem feliz a peregrinação que ele faz, depois de ter sido arrancado – certamente por muito boas intenções – ao circo onde actuava e à dona que o tratava como ele merecia.

EO é um filme muito forte – quase violento (e não me refiro às violências que o burro sofre) – pela tensão que as imagens, e sobretudo a música, provocam no espectador. “Encontrei um colaborador extraordinário, Michal Dymek, o diretor de fotografia. Queria fazer coisas extravagantes e planos radicais, ainda não tentados no cinema a nível técnico, e eu encorajei-o, disse-lhe que não queria neste filme um plano sequer que fosse convencional, que preferia o extraordinário, o não ortodoxo, o risco levado ao limite. Em relação ao som, esta já é a minha terceira colaboração com o compositor polaco Pawel Mykietyn. (…) Pedi-lhe que as suas sinfonias imaginassem o monólogo interior do burro e que o sentissem, na cabeça e no coração.” (Palavras do realizador, citadas na Revista do Expresso, 17 de Fevereiro de 2023, por Francisco Ferreira.)

Como diz ainda no mesmo artigo, e que todos nós que lemos e conhecemos as Fábulas de Esopo, por exemplo, entendemos bem: “todos os animais que por este filme passam, não é só o burro, são os sapos, as aranhas, as corujas, os cavalos, as raposas, todos eles a sublinharem uma consciência imemorial, anterior às palavras dos homens, e ao mesmo tempo a nossa crueldade: EO, à sua medida, é uma espécie de adeus à humanidade.”

E termino com a “Oração do Burro” (de Anthony de Mello):

Perdoa, Senhor, se me escapou um zurro. Sou um pobre burrito. Conheces-me desde aquela noite de Natal em que choramingaste entre as minhas palhas. E porque me conheces há tanto tempo, compreendes bem a minha teimosia, à força de pauladas e jejuns.

Sabes da minha coragem para aguentar impávido debaixo da carga e ser apenas o que quiseste que eu fosse: um burrito. Perdoa se te deixo mal com a minha lentidão, a minha casmurrice e a minha desconfiança. E compreende também que quando me batem sem motivo dá-me vontade de escoicear seja quem for e revoltar-me.

Senhor, não te peço que me tornes diferente. Peço-te força para continuar a ser como me sonhaste. Que os homens compreendam que, mesmo sendo burro, sou também criatura tua.

No entanto, há algo que me anima: Lembras-te daquele dia em que enviaste os teus discípulos à procura de um burrito? Disseste-lhes: «Se alguém perguntar, respondei: O Senhor precisa dele.» Para viver e ser feliz, continua a chegar-me isto: Senhor, tu precisas de mim! Ámen.

Se ouvíssemos o que nos diz este burro, talvez conseguíssemos tornar esta Terra a Casa Comum sonhada por Deus para todas as suas criaturas.

 

Título original: EO
Realizador: Jerzy Skolimowski
Elenco: Isabelle Hupert, Tomasz Organek, Mateusz Kosciukiewicz, Sandra Drzymalska, Lorenzo Zurzolo
Drama, POL., ITA.
86 min., M/12

 

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