
EO, filme de Jerzy Skolimowski. Foto de promoção do filme.
Para os que, como nós, temos um burro no Presépio a aquecer o Menino e outro que carrega Jesus na sua entrada pascal em Jerusalém, este é um filme muito sugestivo e simbólico. Falo de EO (uma onomatopeia correspondente ao nosso hi hon), o último filme-metáfora-fábula de Jerzy Skolimowski. Como alguém escreveu, “é um filme para ser visto, não para ser contado”, pois é um filme sem história. Um filme que nos vai dando a ver fragmentos e situações do nosso mundo e da nossa sociedade, através do olhar de um burro. Falo de situações que têm a ver com violência, maus-tratos, assassinatos, questões ecológicas. É a Via Sacra de um burro que nos vai “dizendo” o que vê e o que pensa. O nosso mundo pelo olhar de um burro. E não é muito bonita nem feliz a peregrinação que ele faz, depois de ter sido arrancado – certamente por muito boas intenções – ao circo onde actuava e à dona que o tratava como ele merecia.
EO é um filme muito forte – quase violento (e não me refiro às violências que o burro sofre) – pela tensão que as imagens, e sobretudo a música, provocam no espectador. “Encontrei um colaborador extraordinário, Michal Dymek, o diretor de fotografia. Queria fazer coisas extravagantes e planos radicais, ainda não tentados no cinema a nível técnico, e eu encorajei-o, disse-lhe que não queria neste filme um plano sequer que fosse convencional, que preferia o extraordinário, o não ortodoxo, o risco levado ao limite. Em relação ao som, esta já é a minha terceira colaboração com o compositor polaco Pawel Mykietyn. (…) Pedi-lhe que as suas sinfonias imaginassem o monólogo interior do burro e que o sentissem, na cabeça e no coração.” (Palavras do realizador, citadas na Revista do Expresso, 17 de Fevereiro de 2023, por Francisco Ferreira.)
Como diz ainda no mesmo artigo, e que todos nós que lemos e conhecemos as Fábulas de Esopo, por exemplo, entendemos bem: “todos os animais que por este filme passam, não é só o burro, são os sapos, as aranhas, as corujas, os cavalos, as raposas, todos eles a sublinharem uma consciência imemorial, anterior às palavras dos homens, e ao mesmo tempo a nossa crueldade: EO, à sua medida, é uma espécie de adeus à humanidade.”
E termino com a “Oração do Burro” (de Anthony de Mello):
“Perdoa, Senhor, se me escapou um zurro. Sou um pobre burrito. Conheces-me desde aquela noite de Natal em que choramingaste entre as minhas palhas. E porque me conheces há tanto tempo, compreendes bem a minha teimosia, à força de pauladas e jejuns.
Sabes da minha coragem para aguentar impávido debaixo da carga e ser apenas o que quiseste que eu fosse: um burrito. Perdoa se te deixo mal com a minha lentidão, a minha casmurrice e a minha desconfiança. E compreende também que quando me batem sem motivo dá-me vontade de escoicear seja quem for e revoltar-me.
Senhor, não te peço que me tornes diferente. Peço-te força para continuar a ser como me sonhaste. Que os homens compreendam que, mesmo sendo burro, sou também criatura tua.
No entanto, há algo que me anima: Lembras-te daquele dia em que enviaste os teus discípulos à procura de um burrito? Disseste-lhes: «Se alguém perguntar, respondei: O Senhor precisa dele.» Para viver e ser feliz, continua a chegar-me isto: Senhor, tu precisas de mim! Ámen.”
Se ouvíssemos o que nos diz este burro, talvez conseguíssemos tornar esta Terra a Casa Comum sonhada por Deus para todas as suas criaturas.
Título original: EO
Realizador: Jerzy Skolimowski
Elenco: Isabelle Hupert, Tomasz Organek, Mateusz Kosciukiewicz, Sandra Drzymalska, Lorenzo Zurzolo
Drama, POL., ITA.
86 min., M/12