
Eduardo Sousa no seu posto de trabalho em casa, numa mesa de jantar dividida em duas partes. Foto © Joana Veigas.
Neste 1º de Maio de 2021, faz exactamente um ano que estou a trabalhar em casa, devido à pandemia. Um dia que deve servir de pausa, de luta e de reflexão.
Comecei a trabalhar quando entrei para a Universidade, para poder pagar os estudos. Desempenhei várias funções, até que comecei a trabalhar num centro de atendimento telefónico durante oito horas por dia, numa sala com mais 60 pessoas; mais parecia uma linha de montagem. Percorri alguns horários, até fixar-me no atendimento entre a meia-noite e as 8h00. Terminada a Licenciatura em Estudos Portugueses e Ingleses, e sem perspectivas de algo melhor (tantas vezes oiço “mas nós somos portugueses e todos sabemos falar inglês”), fui-me mantendo no atendimento telefónico. Como o ordenado mínimo que recebia era pouco, juntei um segundo trabalho. Sim, durante quatro anos trabalhei 16 horas por dia, numa roda-viva que começava às 00h e terminava às 18h, deixando-me apenas 3 horas por dia para poder dormir.

“Comecei a trabalhar num centro de atendimento telefónico durante oito horas por dia, numa sala com mais 60 pessoas; mais parecia uma linha de montagem. Foto: um centro de atendimento telefónico em São Paulo, Brasil. © Carlos Ebert / Wikimedia Commons
Os dias sucediam-se; um após o outro após o outro, eram sempre iguais, quer fosse semana ou fim de semana, Natal ou passagem de ano, sabia tudo ao mesmo. Muitas pessoas lamentavam: “Coitado de ti que trabalhas tantas horas” ou “nem tens tempo para nada”. Eu via, contudo, pela parte positiva: eu tinha dois trabalhos, mas muitos não têm nem um; eu trabalhava muitas horas, num grande esforço físico e mental, porque tenho força e saúde para tal. Sentia-me em paz comigo mesmo e com o meu estoicismo, se calhar até demais…
Um dia, comecei a despertar desta dormência. Sentia-me incomodado ou, até mesmo encurralado. Não iria ficar rico a receber dois ordenados mínimos. Em 10 anos perdi oito vezes o Natal e a passagem de ano a trabalhar. Seria este o máximo a que eu poderia aspirar? Durante alguns dias não conseguia pensar noutra coisa. Até que, durante uma pausa do trabalho, fiz a chamada telefónica que mudou tudo: falei com a minha esposa, e disse-lhe que poderia ficar no fundo de desemprego (sobre o que falarei mais à frente) e voltar a estudar para melhorar a minha condição. Ela respondeu-me que era um risco, que nos afectaria aos dois, mas que confiaria em qualquer que fosse a minha decisão. Mesmo ouvindo de muita gente que, aos 36 anos, já seria tarde para mudar radicalmente a minha vida, decidi arriscar…
Comecei a frequentar cursos de jornalismo no Cenjor, concluí uma pós-graduação de jornalismo no ISCTE, e iniciei o Mestrado de Ensino de Português como Língua Estrangeira/Língua Segunda na Faculdade de Letras. Entretanto, voltei a trabalhar no atendimento telefónico no meu conhecido horário das 00h às 08h; afinal, as contas têm de ser pagas, mas a mudança está em curso…
Muito se fala da actual precariedade do trabalho provocado pela pandemia. Esta precariedade já existia há muito, apenas ficou mais destacada. Para quem esteja desempregado e/ou a passar por dificuldades, só posso partilhar o que a minha colega Clarisse me disse numa aula no Cenjor: “Quando te apresentaste à turma, disseste que estavas no Fundo de Desemprego. Não lhe chames isso, porque tu não estás no fundo. Nem tu nem ninguém; isto é um apoio para quem precisa, mas nunca penses que estás no fundo.”

O posto de trabalho em casa de H., colocado numa tábua de engomar. Foto: Direitos reservados.
Eduardo Oliveira Sousa trabalha num centro de atendimento telefónico