
Abrir a cortina para o outro. Foto © Pexels
Conta-se a história de um casal que entrou num restaurante para almoçar. A mesa que reservaram ficava junto a uma grande janela com vista privilegiada para a grande avenida da cidade. Entre a conversa, o almoço foi servido com todo o requinte. O que poderia estragar e interromper este momento a dois?! De repente, todo este cenário muda quando o casal se apercebe que, do lado de fora, encostada ao vidro, estava uma criança olhando fixamente para o manjar sobre aquela mesa. A fome era notória na criança e tão pouco seria preciso muito esforço para compreender o que ela pensava e queria. Perante isto, o marido chamou o empregado, mostrou-lhe a criança e num tom aborrecido e meio constrangedor disse: “Queremos almoçar sossegados. Feche a cortina, por favor.”
Sempre que ouço esta história tenho a sensação de que o homem vai chamar o empregado para lhe pedir que coloque mais um lugar na sua mesa para sentar a criança e partilhar do almoço e conforto com ela, ou então, oferecer e pedir para levar-lhe uma refeição. Mas sabemos que não é assim. E o que pensou que o casal iria fazer? Como se sentiu ao ler o final da história? O normal será sentir indignação por este ato de perfeita injustiça, falta de compaixão e de puro egoísmo.
Quando uma história destas é contada tem como objetivo não permitir que fiquemos apenas por comentários e pareceres, mas levar-nos a uma tomada de decisão. E mesmo sendo contada pelo lado negativo, ela desafia-nos a ser diferentes daquele casal, a amar o próximo como a nós mesmos.
Fechar a cortina para não nos sentirmos incomodados ou desafiados a socorrer, chama-se indiferença, reflexo da falta de empatia, amor e humanidade.
É mais fácil desligar a televisão ou mudar de canal para não ver os problemas e necessidades que os outros estão a sofrer. É mais cómodo ficar em casa do que gastar algum tempo para ir ajudar alguém. É mais relaxante ouvir uma música do que disponibilizar-se para ouvir alguém que está angustiado. É-se mais pronto a arranjar desculpas por causa da falta de tempo, amaciando hipocritamente a consciência incomodada. É mais fácil gastar dinheiro em coisas fúteis do que contribuir para uma causa solidária. É mais fácil ir para ali e acolá e nem ver “a criança faminta”.
É verdade que é impossível chegarmos a todos os lugares e ajudarmos todas as pessoas, mas todos conseguimos olhar ao nosso redor e escolher não ser nem viver na indiferença para com o nosso próximo. E o pouco que possamos ter para partilhar é sempre muito para quem não tem nada.
Porque será que muitas pessoas se admiram ou fascinam com histórias de benfeitores? Não será que o número dos que intervêm é bem inferior ao dos que apenas falam? Estaremos a falar de algo raro ou em extinção? Afinal, não deveria ser de todos nós a prática do bem, do socorro, da beneficência? Não importa se somos anónimos ou muito conhecidos, mas importa que cada vez mais haja um número crescente de pessoas e instituições que cheguem junto da “criança faminta”, ou seja, do necessitado e responda satisfatoriamente.
Fechar a cortina não é a solução, mesmo quando o que vemos seja por vezes tão avassalador e nos faça sentir tão incapazes. Fechar a cortina não apaga absolutamente nada, ela só esconde a necessidade do outro e revela o nosso coração.
“Abre a sua mão ao pobre, e estende as suas mãos ao necessitado.” (Provérbios 31, 20)
“Quem, pois, tiver bens do mundo, e, vendo o seu irmão necessitado, lhe cerrar as suas entranhas, como reside nele o amor de Deus?” (Primeira Carta de João 3, 17)
Isabel Ricardo Pereira é missionária evangélica; contacto: isabeljose@sapo.pt