
Jornalista a cobrir os confrontos numa praça em Kiev, em 2014. Foto © Mstyslav Chernov/Wikimedia Commons
“Ignorância e desinformação podem ser uma ameaça à segurança deste país. (…) A liderança americana deve ser guiada pelas luzes da aprendizagem ou da razão – caso contrário, alguém que confunda a retórica com a realidade e o plausível com o possível vai rapidamente ver a sua popularidade ascender com as suas soluções para todos os problemas do dia-a-dia, à primeira vista, surpreendentemente eficazes e simples.”
Assim construiu John F. Kennedy (1917-1963) o discurso de abertura da campanha para a sua reeleição, supostamente para ser lido na cidade de Dalas a 22 de novembro de 1963, dia em que acabaria a ser assassinado. Passadas quase seis décadas, a verdade é que a atualidade destas palavras não se dissipou: há 48 anos, Abril veio mostrar como o jornalismo independente e livre é essencial à democracia.
Denúncia das irregularidades, aproximação do eleitorado aos cidadãos comuns, desmistificação de propostas, ideias e ideologias, exposição de atrocidades provocadas pela malvadez humana. Estas são apenas algumas das muitas facetas em que o jornalismo se revela como indispensável no mundo em que vivemos atualmente – e que a internet e as redes sociais vieram reforçar. Tal como referiu Helmut Schmidt (1918-2015), antigo chanceler alemão, em 2014, numa entrevista ao jornalista dinamarquês Ulrik Haagerup, membro do Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação, “As democracias ocidentais desenvolveram-se em direção a media-democracias e o poder dos media é maior do que nunca na história da Humanidade”.
Quase dez anos depois, estas palavras saem reforçadas à luz dos nacionalismos exacerbados e insaciáveis que insistem em revisitar-nos de quando em vez para atentarem gravemente contra os Direitos Humanos. Os jornalistas na Ucrânia – os heróis, aliás – não servem apenas para nos manterem atualizados, a todo o minuto, sobre as atrocidades cometidas pelas tropas russas: ajudam refugiados a não perder a esperança e os seus sonhos, contam histórias de sofrimento e de caos e recolhem provas de crimes de guerra.
No dia em que a noite e a escuridão na Ucrânia deixarem de parecer eternas, como referiu o Papa Francisco na Vigília Pascal do passado 15 de abril, os jornalistas vão estar na linha da frente, com um imenso portefólio que nos relembrará, mais uma vez, para onde nos levam o extremismo, os discursos facínoras e o ódio. É dos jornalistas (e não de indivíduos que se tornam simples veículos de propaganda) que dependeremos para provar que ucranianos e russos não são o mesmo povo, que houve a invasão injustificada do território por um país estrangeiro e que as tropas russas não defenderam a população ucraniana, como a manipulação mediática do Kremlin tenta provar.
Aliás, este papel do jornalismo não está condicionado às guerras que possam rebentar pelo mundo fora: em qualquer democracia, o jornalismo deve ser capaz de combater, expor e desconstruir todas as formas antidemocráticas que, por vileza humana ou oportunismo, fazem questão de apagar as “luzes da aprendizagem e da razão” de que Kennedy falava.
Foram estas as luzes que se acenderam na madrugada de 25 de abril de 1974 nas redações por todo o País: como referiu Manuel Dias, jornalista do Jornal de Notícias durante a Revolução, numa entrevista ao JornalismoPortoNet em 2012. “O ambiente era muito frenético. Sentia-se que se estava a viver algo de novo. A equipa trabalhou durante, pelo menos, dois dias e duas noites sem ir à cama e sem refeições”.
Quase 50 anos depois, os jornalistas por cá continuam. Sem medo de criticarem posições inexplicáveis perante uma guerra, capazes de compreenderem muito bem as verdadeiras intenções de quem quer criar cadastros étnico-raciais e pondo o serviço público à frente de qualquer interesse comercial – muitas vezes em condições que são tudo menos as merecidas por uma profissão essencial à democracia.
Em 2017, Ulrik Haagerup apresentou no seu livro Constructive News, um estudo sobre os diferentes níveis de confiança da população dinamarquesa em relação a diferentes profissões. Numa escala de zero a cinco, os jornalistas são a quarta profissão em que menos se confia, com 2,54 pontos. Entre 2006 e 2020, mais de 1200 jornalistas foram assassinados por todo o mundo, apenas por cumprirem a sua missão de informar e de contar a verdade. Pior ainda: 90% dos homicidas saíram impunes, segundo dados do Observatório da Unesco para os Jornalistas Assassinados.
Em fevereiro de 1978, Saramago sabia muito bem, no seu conto Cadeira, o que era o 25 de Abril: via da janela “que há muito tempo que não tínhamos um tempo assim.” Mais de 40 anos depois, fica aqui a minha aposta: dessa janela, viam-se facilmente as “luzes de aprendizagem e da razão” de que Kennedy falava. Tinham sido os jornalistas a acendê-las – e é por isso que também lhes devemos a liberdade. Obrigado.
Alexandre Abrantes Neves é estudante de Comunicação Social e Jornalismo na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. Contacto: alexandre.m.a.neves@gmail.com