
O destino de Caim depois de matar o seu irmão Abel na escultura de Henri Vidal, Jardim das Tulherias em Paris, França.
É dura e contundente a resposta da Comissão Independente sobre os Abusos Sexuais na Igreja (CIASE), em França, à contestação do relatório, feita em novembro último por um conjunto de dirigentes e fundadores da Academia Católica (ACF) do país (ver notícia no 7MARGENS).
Assinada pelo seu presidente, Jean-Marc Sauvé, mas com a concordância de todos os membros da Comissão, o documento de 54 páginas rebate ponto por ponto as objeções levantadas, nomeadamente quanto à extrapolação feita acerca do número de vítimas e quanto a considerações de natureza teológica e pastoral, que figuram em especial na parte das recomendações.
Sauvé não deixa, no entanto, logo na parte inicial, de questionar os processos seguidos pelos contestatários. Primeiro, porque, sendo o próprio Sauvé membro da Academia, não houve qualquer contacto com o relator e uma entrevista entretanto marcada foi anulada sem explicação. Depois, por ter sido dito que a contestação era assinada não pela Academia, mas por um conjunto de membros, quando o texto invoca a discordância da Academia. Finalmente, porque os próprios signatários se multiplicaram em intervenções públicas reveladoras de que a intenção foi “denegrir” e “desacreditar” o trabalho realizado, em lugar de suscitar o debate.
Comissão fez “procura serena, por muito incómoda que fosse”
“O que guiou a Comissão foi a procura serena, mas determinada da verdade, por muito incómoda que ela pudesse ser, assim como as consequências a tirar dela”, sublinha o documento. E não se coíbe de denunciar: “O que se passa é que a Academia não aceita que a Igreja Católica tenha confiado a leigos, isto é, a outros que não os clérigos, a tarefa de esclarecer a questão da pedofilia dentro da Igreja. Para ela, só pode haver análises e propostas legítimas sobre a Igreja Católica se vierem do aparelho eclesial. A Academia sucumbe assim à armadilha do clericalismo.”
A Academia Católica é guiada, segundo a Comissão Sauvé, por “uma certa ideia de proteção da Igreja Católica” que ignora totalmente as vítimas. “O nosso trabalho pretende partir das vítimas e voltar a elas, ao passo que a Academia Católica não presta a mínima atenção ao seu clamor, para lá de algumas frases de compaixão”, denuncia.
Para responder à crítica da extrapolação dos números – 330.000 vítimas de abuso sexual na Igreja desde 1950 – que era também uma critica às metodologias adotadas no estudo da CIASE, Sauvé pediu a um grupo de cinco especialistas em metodologias e a um professor do Collège de France, ex-diretor do Instituto Nacional de Estudos Demográficos de França, que analisassem o que foi feito. A conclusão foi: “Nenhuma crítica da Academia Católica foi validada.” Os documentos apresentados pormenorizam cada um dos argumentos das objeções da Academia e os argumentos para a sua não validação.
O debate teológico e a audiência adiada

Jean Marc Sauvé, responsável da comissão que elaborou o relatório sobre os abusos em França. Foto © JB Eyguesier / Conseil d’Etat/Dircom / cc-by-2.0
As considerações e recomendações de natureza jurídica e teológica, que foram objeto não apenas de contestação, mas mesmo de vivo repúdio por parte da Academia Católica diziam respeito ao segredo da confissão, à teologia do ministério sacerdotal, à moral sexual e ao celibato dos padres, entre outros aspetos. Sobre elas, Sauvé considera que “em nada atentam contra a doutrina católica”. “Lutar conta os desvios, as perversões e as adulterações não significa pisar o depósito da fé. Colocar questões e assinalar pontos que merecem atenção não é atacar a natureza espiritual e sagrada da Igreja”, responde o ex-vice-presidente do Senado francês.
Em declarações ao jornal Le Monde, Jean-Marc Sauvé acrescentou: “Os autores [da Academia] dirigiram-se à Santa Sé para desqualificar o nosso estudo com base em argumentos que adotam a visão oposta à dos ensinamentos do Papa Francisco.” A verdade é que a audiência que o presidente da Comissão teve prevista para apresentar o relatório ao Papa Francisco, no início de dezembro último, foi cancelada, estando agora a ser reagendada.
“A passividade prolongada” da Igreja
Um outro ponto da resposta da CIASE diz respeito ao “caráter sistémico” dos abusos sexuais na Igreja. A contestação da Academia Católica insurgia-se contra aquilo que considerava “a orquestração de um escândalo real para fazer dele justificação para um ataque deliberado à Igreja, por parte de uma Comissão que não tem qualquer legitimidade” para tal.
Na resposta, o organismo visado começa por esclarecer que o uso do termo “sistémico” não significa, como pretenderia a Academia, que esteja a sugerir que a instituição “teria deliberada e sistematicamente organizado um sistema de abusos sexuais em grande escala”. O que sim, a Comissão pretende significar, em contrapartida, é que, “tendo tido conhecimento de um número recorrente de abusos no seu interior, ela se tenha em geral abstido de os tratar de maneira adequada, isto é, de lhes pôr fim ou de preveni-los”.
A questão residira, por conseguinte, “nesta passividade prolongada que envolve a responsabilidade da instituição e autoriza a falar de um fenómeno sistémico”. Este “caráter sistémico”, acrescenta a Comissão, “não põe em causa a capacidade da instituição eclesial para remediar as suas disfunções”, nomeadamente graças aos controlos internos e à criação de mapas de risco” a que, de resto, se comprometeram os bispos franceses, na assembleia geral de Lourdes no outono passado.
No final, o presidente da CIASE diz acreditar que as críticas da Academia Católica acabam por atacar “os dirigentes – a Conferência Episcopal Francesa e a Conferência Francesa de Religiosos – mais do que a própria Comissão”, e que “definitivamente vão contra os ensinamentos claros do Papa Francisco”, assim como os princípios do Concílio Vaticano II, que convidam a Igreja a “escutar os homens e mulheres de boa vontade”.