
“O que se pode dizer é que, por caminhos vários, este caso de Munique veio colocar o problema dos abusos na Igreja não apenas numa (em mais uma) diocese, mas, pelos protagonistas envolvidos, no próprio Vaticano.” Foto: Arquivo 7Margens.
Sobre as leituras e as consequências do estudo divulgado há precisamente uma semana relativamente aos abusos na Arquidiocese de Munique, uma das principais da Alemanha, o mundo católico encontra-se em suspenso. Já esta sexta-feira, 28, espera-se o pronunciamento da diocese visada e tanto o Vaticano como Bento XVI anunciaram ir estudar atentamente o documento, tendo o agora Papa emérito prometido responder.
Ao longo dos últimos oito dias, multiplicaram-se as reações, a esmagadora maioria delas em torno do comportamento de Bento XVI, relativas aos cerca de quatro anos em que o então Joseph Ratzinger foi arcebispo de Munique. Diversas organizações alemãs, como as associações de vítimas, mas também responsáveis da Igreja, verberaram esse comportamento. Mas muitas foram também, dentro e fora da Alemanha, as vozes que o defenderam, pondo em destaque as medidas de tolerância zero e de responsabilização de prevaricadores, que tomou enquanto Papa.
Esta quarta-feira, 26, foi conhecida uma posição de apoio a Bento XVI da parte do responsável do Dicastério para a Comunicação da Santa Sé, Andrea Tornielli, que vai no mesmo sentido, o de enaltecer as medidas de firmeza que Ratzinger tomou ao longo de todo o seu pontificado, traduzidas em normas e regulamentos e em declarações de grande contundência sobre o crime de abuso dos mais pequenos.
O editorial, publicado no Vatican News, procura, por outro lado, chamar a atenção para a natureza do relatório sobre os abusos em Munique. “As reconstruções contidas no relatório de Munique, que – é preciso lembrar – não são um inquérito judicial, muito menos uma sentença definitiva, ajudarão a combater a pedofilia na Igreja se não forem reduzidas a uma busca de fáceis bodes expiatórios e julgamentos sumários”, observa.
Esta foi a forma encontrada no Vaticano para responder a vozes críticas do Papa Francisco, acusando-o de ter sido rápido a comentar os resultados da investigação aos abusos em França, em outubro último, mas de se ter calado quando Bento XVI estava a ser “imolado”.
A verdade é que Ratzinger, que há mais de dez anos negava ter estado presente na reunião que aceitou a entrada na sua diocese de um padre com uma trajetória de pedofilia, veio esta semana corrigir a informação que tinha dado, perante provas documentais que o relatório de Munique publicou. A justificação que dá, de que nessa reunião não foi discutida a atividade pastoral a atribuir ao sacerdote, não convence toda a gente e, desde logo a comissão de juristas que fez o estudo. Mas não só.
Hans Zollner: “Não basta a letra da lei”

O padre Hans Zollner manifesta o desejo de que o grande legado de Bento XVI – “na teologia, na liderança da Igreja e na realização de algumas mudanças na lei canónica em relação aos abusos” – não se perca neste episódio. Foto © Rebecski_Wikimedia Commons.
Neste contexto, tem dado que falar a irrupção, esta semana, de um nome sonante da luta contra os abusos e defensor de um caminho muito mais arrojado da Igreja ao lado das vítimas. Trata-se do padre jesuíta Hans Zollner, que é membro da Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores, desde a sua fundação, em 2014, e diretor do Instituto de Antropologia e Estudos Interdisciplinares sobre Dignidade Humana e Cuidados, na Universidade Pontifícia Gregoriana. Este Instituto nasceu, curiosamente, na Arquidiocese de Berlim, e transferiu-se em 2015 para Roma. O seu diretor, um dos mais destacados especialistas sobre os abusos, tem desempenhado um papel importante na formação do clero em vários países, entre os quais Portugal, e mesmo na formação dos bispos recém-nomeados, em estadias que fazem em Roma.
Esta semana, Zollner reconheceu que o agora Papa emérito respondeu para já num registo jurídico, mas que é preciso ir mais longe. “Eu esperava que, além da resposta, houvesse um maior reconhecimento do sofrimento das vítimas e houvesse aqui muito mais empatia e humanidade e não apenas o seguir a letra da lei”, disse Zollner, em declarações citadas pela agência Religion News Service.
Isto porque, na longa resposta que Bento XVI deu aos investigadores, “falta o coração e as expectativas das vítimas e das suas famílias, das paróquias e fieis, bem como do público”.
O padre Hans Zollner manifesta o desejo de que o grande legado de Bento XVI – “na teologia, na liderança da Igreja e na realização de algumas mudanças na lei canónica em relação aos abusos” – não se perca neste episódio. “Ele pode corrigir essa impressão, mas só ele, ninguém para além dele”, ajuizou.
De Munique a Roma
O que se pode dizer é que, por caminhos vários, este caso de Munique veio colocar o problema dos abusos na Igreja não apenas numa (em mais uma) diocese, mas, pelos protagonistas envolvidos, no próprio Vaticano.
Olhando em perspetiva, torna-se evidente que quando, na primavera de 2021, o cardeal arcebispo de Munique Reinhard Marx apresentou ao Papa a sua demissão, era conhecedor de que ele próprio estava envolvido em casos de inação, apesar do mérito que tem de ter encomendado o estudo. Ele próprio assumiu, pessoalmente, as responsabilidades pelos erros graves no modo como a Igreja alemã lidou com os abusos. Com toda a probabilidade, sabia também que na rede estava para aparecer o antigo arcebispo Ratzinger. O Papa Francisco teria de estar ao corrente da situação. Como interpretar, então, a recusa da demissão de Marx?
Por outro lado, é fácil imolar Bento XVI, mesmo tendo ele responsabilidades. Mas é preciso perceber que o mesmo Bento XVI, em algum momento da sua trajetória pessoal e eclesiástica, evoluiu e percebeu que a Igreja não poderia mais dar cobertura a padres abusadores, fossem eles quem fossem. Tivessem a cobertura da Cúria Romana que tivessem. Mesmo que se tratasse de Marcial Maciel Degollado, o fundador dos Legionários de Cristo.
Há, por conseguinte, bastante que esclarecer dos lados da Cúria Romana. Resta saber se Francisco, que tem sido incansável em muitas frentes, e sem dúvida nesta frente dos abusos, estará com forças para mandar fazer o que ainda não foi feito e falta fazer: uma auditoria às congregações e dicastérios do Vaticano.