O bispo auxiliar de Lisboa Américo Aguiar afirmou ao jornal Público que a “Igreja Católica admite investigação de casos de pedofilia, desde que não seja limitada ao clero”, título da manchete do jornal deste sábado, dia 9.
Exprimindo-se na qualidade de coordenador da Comissão de prevenção e combate aos abusos de menores do Patriarcado de Lisboa, Américo Aguiar sublinha que a Igreja “é a única instituição que, apesar de todos os arrastamentos e dificuldades, está a levar isto a sério”. Entende, por isso, que, sem sacudir responsabilidades, o foco não pode estar apenas na Igreja, perguntando: “Vêem o Ministério da Educação a fazer alguma coisa? As ordens profissionais a fazer alguma coisa?”
Não sendo um jornal católico, mas fazendo do facto religioso (e desde logo católico, tendo em conta a realidade portuguesa em que se insere) o centro da sua atenção, e reconhecendo ainda o papel e peso da Igreja Católica na sociedade, o 7MARGENS não pode deixar de expressar as mais fundas inquietações com este tipo de posições – que traduzem, aliás, tanto quanto se percebe, o sentir de uma parte importante do episcopado e do clero.
Não está em causa a responsabilidade de outras instituições da sociedade portuguesa no problema do abuso sexual de menores. Desde logo a família, que surge, em vários estudos internacionais – também no Relatório Sauvé, encomendado pela Igreja Católica em França – como o espaço predominante desse tipo de abusos. Mas estas declarações são abusivas, injustas e moralmente inaceitáveis à luz do Evangelho e do que o Papa Francisco tem pugnado.
A hierarquia católica em Portugal não tem autoridade moral neste campo. Primeiro, porque não conhece a sua própria realidade. Segundo, porque resistiu quanto pôde a constituir comissões diocesanas sobre os abusos do clero requeridas pelo Papa e pelo Vaticano (o bispo do Porto, por exemplo, começou por dizer que a utilidade de uma tal comissão seria equivalente a outra que estudasse os efeitos da queda de um meteorito na cidade). Terceiro, porque, ao contrário do que se passou em França, Alemanha, Austrália e em vários outros países, nem encomendou um estudo independente e retrospetivo sobre a situação e muito menos disponibilizou o acesso dos seus arquivos diocesanos a investigadores independentes. Finalmente, porque foram precisamente os crimes de abuso e, depois, de encobrimento, que levaram à tremenda perda de credibilidade da Igreja Católica – atingindo, por tabela, os milhões de crentes que, pelo mundo fora, fazem muito bem a muita gente em nome da sua fé e que passaram a ser olhados com desconfiança por causa dos que traíram gravemente o Evangelho.
Estão em causa, na instituição hierárquica católica – não na Igreja enquanto comunidade dos crentes que se reúnem em Jesus Cristo – questões ainda mais profundas do que o abuso sexual. Foi o próprio Papa Francisco, na carta que escreveu aos católicos do Chile, em 2018, quem não poupou nas palavras: este processo radica em questões que ele define como uma “psicologia de elite ou elitista” dos membros do clero, que leva a espiritualidades narcisistas e autoritárias, reveladoras de “messianismo, elitismos, clericalismos”, palavras sinónimas “de perversão no ser eclesial”.
Atente-se mesmo no parágrafo da análise feita pelo Papa, que se pode ler como retrato de tantos comportamentos quotidianos em comunidades religiosas ou instituições católicas: “Essa psicologia de elite ou elitista acaba por gerar dinâmicas de divisão, separação, ‘círculos fechados’ que desembocam em espiritualidades narcisistas e autoritárias nas quais, em vez de evangelizar, o importante é sentir-se especial, diferente dos demais, deixando assim em evidência que nem Jesus Cristo nem os outros interessam verdadeiramente. Messianismo, elitismos, clericalismos são todos sinónimos de perversão no ser eclesial.” Palavras do Papa.
Sim, é verdade: a Igreja tem feito muito, sobretudo com Bento XVI e mais ainda com Francisco, para resolver a tragédia dos abusos; a imperfeição e a perversão fazem também parte da natureza humana e, por isso, este tipo de crimes não desaparecerá da face da terra nem do interior da Igreja, por mais medidas e seguranças que existam; a maior parte dos crimes acontecem no âmbito familiar – que, aliás, são investigados pelas autoridades quando aparecem relatos; e sectores profissionais mais expostos a situações que podem potenciar este tipo de situações devem ser escrutinados, também, mas isso deve ser a sociedade a exigir (e poderia ser a hierarquia católica a pedi-lo, tivesse ela moral para o fazer, se a sua própria casa já estivesse arrumada).
Isto dito, também é verdade que, se há sítio onde um crime como este nunca deveria acontecer, é na comunidade dos que se dizem de Jesus e do seu Evangelho. Porque este crime – não só o abuso, mas também o ocultamento e a proteção dos predadores – é a negação absoluta desse Evangelho de que a Igreja se entende portadora. Essa negação – a par do abuso de poder, da “psicologia de elite”, do “narcisismo”, do “autoritarismo” ou do clericalismo – é que conduz, mais do que qualquer outro factor, à perda de credibilidade católica e à incapacidade de tornar significativa a mensagem cristã numa sociedade em acelerada secularização – não pela “perda de valores” como apregoa um certo discurso católico, mas porque a instituição que devia ser exemplar em vários valores deixou de o ser aos olhos de muitas pessoas. Dito com uma linguagem usada na Igreja Católica, é isso que conduz à impossibilidade de um testemunho eficaz e de levar os outros a reconhecer o Evangelho pelos frutos de quem o devia fazer frutificar.
Mesmo que Portugal fosse uma ilha na cultura clerical que tem predominado na Igreja Católica, essa seria mais uma razão – acrescida, mesmo – para que fosse ela própria a fazer o que noutros países já se fez: encomendar a um grupo de peritos independente um estudo exaustivo sobre o que foi a realidade dos abusos nas últimas décadas. A investigação dos casos, o castigo e a publicitação dos criminosos eclesiais, bem como a reparação devida às vítimas e a criação de regras que evitem estes crimes o mais possível e impeçam o seu ocultamento não estão sujeitos a qualquer condicionalismo de terceiros.
Não deixa de ser irónico que estas declarações apareçam no mesmo dia em que, em Roma, o Papa abre o processo sinodal que, na sua perspectiva, deve conduzir a uma Igreja mais participada por todos e menos clerical – afinal, aquilo que eram as comunidades cristãs no seu início, em que se falava em ministérios de serviço e não num qualquer poder sacro atribuído a uma elite. Aliás, o gelado entusiasmo com que o Sínodo convocado pelo Papa também está a ser acolhido em Portugal é mais um sintoma de que algo não está bem na orientação hierárquica católica no país.
É altura, por isso, de a hierarquia católica em Portugal se decidir a dar o único passo que a pode credibilizar minimamente neste assunto, seguindo o que já se fez em tantos países: convidar uma comissão de personalidades de reconhecido mérito e independência públicos para investigar a realidade dos abusos no país, nas últimas décadas.