
Ilustração original de © Catarina Soares Barbosa para o 7Margens
Ninguém pôde continuar como se nada tivesse acontecido, depois de ouvir o relatório devastador da Comissão Independente que ouviu as vítimas de abuso na Igreja.
Nem nesse dia nem nos seguintes. E espero que nunca nos habituemos a semelhante dor.
A realidade nauseabunda dos abusos, o flagelo que não acaba, não é um problema português, nem italiano, nem francês, nem espanhol. É um problema da Igreja, de toda ela e, portanto, de todos nós que nos consideramos Igreja. Porque, embora não gostemos de o reconhecer, a nossa Igreja está podre até à raiz.
Por isso, embora eu não seja portuguesa, atrevo-me a dedicar uma reflexão, no âmbito desta série de artigos que tenho estado a publicar neste jornal, para fazer uma proposta face ao que tem vindo a ser tornado público pela Comissão, e vendo que, periodicamente, os casos que aparecem crescem em obscenidade, surpreende-me que até agora, ninguém que eu me lembre, tenha qualificado os abusos sexuais na Igreja como uma blasfémia, porque atentam contra o que há de mais sagrado no mundo: a vida humana. Quem blasfema, amaldiçoa. E estamos a ver como uma série de pessoas repulsivas e sem alma amaldiçoaram a vida de inocentes. Fossem crianças ou adultos.
Agora já sabemos algo sobre o que aconteceu porque, pelo que parece, o que a Comissão descobriu é apenas a parte visível do iceberg. Sabemos que não podemos permanecer de braços cruzados e que devemos estar vigilantes para que se faça justiça às vítimas.
No entanto, podemos fazer muito mais se nos tornarmos justamente exigentes. No passado dia 15 de fevereiro, António Marujo e Manuel Pinto assinaram conjuntamente no 7MARGENS um artigo intitulado Não pode haver meio termo na resposta aos abusos: as 25 tarefas urgentes em que apresentavam treze tarefas a curto prazo, e outras doze a médio prazo. Quando o li pela segunda vez, deparei-me com uma das tarefas mais urgentes que tem de ser empreendida.
Esta tarefa, e aqui está a minha proposta, é que todo o candidato ao sacerdócio que queira ser ordenado deverá realizar previamente, sem nenhuma exceção, o curso de safeguarding, e, sem essa acreditação, a ordenação terá de esperar. Da mesma forma, quem se esteja a preparar para os votos perpétuos, independentemente de serem homens ou mulheres, deveria fazê-lo. Evidentemente, o mesmo para os bispos que veriam atualizado o curso comumente designado de babybishops, que fazem em Roma quando acabam de ser consagrados. E não, não me esqueço dos núncios tão diretamente implicados na eleição dos anteriores.
Os formadores dos seminários, das congregações religiosas, quem tenha responsabilidades pastorais deveria fazê-lo. Até agora, muitos leigos já o fizeram. Seria bom que se ampliasse o tipo de corpo discente. Poderia ser uma maneira de renovar a formação permanente do clero.
Muitas vítimas morreram sem ver justiça nenhuma porque o tempo passou sem que ninguém as atendesse. Outras suicidaram-se porque a vida tinha todos os dias o gosto e o cheiro do abuso. O que para alguns era a intuição daquilo que se aproximava, é já para todos uma evidência comprovada.
Não é uma guerra acabada. É uma batalha travada, apenas isso. O abuso de poder continua, os abusos sexuais também. Os agressores sexuais, disfarçados sobretudo como mestres espirituais, também. Muito cuidado com esses mestres espirituais de voz baixa, movimentos elegantes e contidos, porque alguns deles, no momento que possam, envolvem a sua presa e devoram-na psicológica, espiritual e sexualmente sem o menor escrúpulo.
Há quem tenha tido a ousadia de afirmar, tanto em âmbito público como no meio eclesial, uma opinião pessoal desde uma pressuposta atalaia de superioridade moral – tão inexistente quanto vazia – que não só insulta sem consideração as vítimas, como a qualquer cristão e, inclusivamente, a um não crente. Dir-se-ia que a maior preocupação para alguns é que a Igreja não pague um euro às vítimas e que os seus ouvidos não ouçam a crueza daquilo que viviam diariamente muitas vítimas. Mas há que ouvir e, mais ainda, há que escutar.
No filme Spotlight há uma cena em que o jornalista do Globe se encontra com uma vítima e esta fala de toques e violação. A jornalista, com muito cuidado, faz-lhe ver que a linguagem será muito importante para que todo o mundo saiba o que aconteceu e que terá de ser muito explícito. Tinha toda a razão. E agora devemos escutar a crueza daquilo que passaram.
Se a Igreja “não sabia” o que se passava, isso não a exime de ser responsável. Tem responsabilidade institucional e responsabilidade moral, porque não soube ou não quis formar bem os seus pastores, que deviam cuidar dos mais débeis; porque na formação deu prioridade à figura do clérigo, formando-o naquilo a que poderíamos chamar de “cultura da impunidade” que tão bem aprenderam os grandes especialistas do clericalismo, e que nos trouxe até a situação em que estamos, e na qual se lhes fez acreditar que seriam intocáveis por serem clérigos, por serem – por se julgarem – superiores.
Não. Não são. Não são intocáveis, e sim, são membros de uma instituição que os protegeu desde um espaço de poder corrompido. A única vez que Jesus mostra um traço de ira no evangelho é quando expulsa os vendedores do templo. Jesus não age contra uns comerciantes inocentes. Jesus age contra toda uma trama de poder corrompido que tinha no templo a sua sede central, e nos seus sacerdotes, os seus funcionários mais eficientes. Que diferença havia entre eles e nós? Não me cansarei de repetir que a luta contra os abusos começa nos seminários e nas casas de formação dos aspirantes à vida religiosa.
Em parte, vamos sabendo algo do que aconteceu com as crianças. No entanto, prestamos atenção a outras instituições da Igreja para as quais não olhamos? Em muitos países de outros continentes estão a pôr-se sobre a mesa as denuncias de religiosas abusadas de muitas formas, inclusive sexualmente, é claro. Quanto de tudo disto é devidamente processado no Vaticano? É um aspecto a ter em conta neste flagelo que não acaba.
Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Tradução de Júlio Martin.