
Relatório da Comissão Independente para a investigação dos crimes de abusos sexuais na Igreja Católica veio tornar público aquilo que já se esperava.
O relatório da Comissão Independente para a investigação dos crimes de abusos sexuais na Igreja Católica veio tornar público aquilo que já se esperava. Os portugueses não são diferentes dos outros povos. A investigação em outros países já tinha trazido a lume esta ignomínia.
Importa saber agora quais são as causas profundas deste fenómeno hediondo e quais as medidas que urge levar a cabo para lhe pôr fim. Neste artigo quero apenas aflorar o tema, dando um pequeno contributo para a resolução desta questão de enorme alcance.
Quanto às causas, julgo ser possível determinar uma relação direta entre a forma como tem sido feito o recrutamento dos padres e a dimensão do fenómeno. O modelo de recrutamento manifesta assim as suas enormes fragilidades.
Em primeiro lugar, a palavra “presbítero” (“ancião”) afastou-se há muito do seu significado original. Os “presbíteros” são ordenados ainda muito jovens, com pouco mais de vinte anos, sem quaisquer provas dadas no contacto direto com as comunidades cristãs locais.
Além disso, a comunidade cristã de base não é chamada a escolher o seu líder a partir da sua forma de atuação, da sua experiência vital, da sua capacidade para o diálogo e o acolhimento e o seu provado equilíbrio emocional e afetivo. Bem pelo contrário, é o jovem que se autopropõe, crendo estar investido de um chamamento que o habilita a tal.
Logo que a sua pretensão é aceite, é retirado do convívio natural com os restantes membros das comunidades locais, sobretudo com mulheres, e “enclausurado” numa instituição onde se preserva e promove a sua distância em relação às comunidades reais e se procede a uma educação inteiramente clericalista, alheia à vida concreta e ao mundo real. Desta maneira, transformam-se os candidatos numa casta separada cujo objetivo parece ser (e é, efetivamente, em muitos casos) o de levar a bom porto uma carreira eclesiástica, investindo nela todas as suas energias. É por isso que muitos dos que chegam a bispos e cardeais estão imbuídos desta nefasta ideia de que triunfaram ao alcançarem os mais elevados lugares da carreira, muitas vezes prescindindo da sua liberdade de opinião e expressão ou levando vidas duplas.
Impossibilitados de viver uma existência emocionalmente equilibrada e afetivamente natural, ao longo da sua vida vão escondendo não apenas as suas naturais necessidades sexuais como, sobretudo, as experiências concretas no plano afetivo e sexual. E não é natural que assim seja? Infelizmente, é o próprio sistema que reúne as condições para que tal esquizofrenia existencial ocorra, provocando desequilíbrios que, num outro sistema, poderiam ser evitados.
Que alterações a este estado de coisas urge fazer? Antes de mais, eliminar o celibato obrigatório. Alguns candidatos a presbíteros poderão sentir-se vocacionados para uma vida celibatária, sem que isso moleste o seu equilíbrio emocional. Mas, para a maior parte, o celibato é uma violência sobre a pessoa, promovendo indiretamente vidas duplas e desequilíbrios afetivos com repercussões negativas na relação com os outros.
Em segundo lugar, ninguém deveria ser investido na função de presbítero sem ter sido provada a sua maturidade. O presbítero (homem ou mulher) deveria ser escolhido de entre aqueles que deram provas de maturidade e equilíbrio afetivo, humano e crente. Por isso, os candidatos a presbíteros não devem ser demasiado jovens nem podem ser afastados da vida concreta das comunidades, mas viver inseridos nelas, relacionando-se com todo o tipo de pessoas e provando a sua capacidade de diálogo, tolerância e liderança, como se exige de qualquer presbítero.
A quem caberia realizar a escolha do presbítero? Num sistema tão clerical como o atual, as comunidades concretas nada têm a dizer sobre o assunto! Também neste aspeto, o atual sistema está profundamente caduco. As comunidades devem ter um papel determinante na escolha dos seus líderes. Ainda que a palavra final possa ser do bispo, este deveria escolher a partir de uma lista que lhe seria facultada pelas comunidades locais. Longe de qualquer secretismo (como atualmente ocorre com os bispos), o sistema deveria ser claro e transparente.
Também os bispos deveriam ser escolhidos com base em critérios transparentes por organismos que incluam presbíteros, mas também leigos com responsabilidades diocesanas. O líder da comunidade diocesana deve ser escolhido pela própria comunidade diocesana, ainda que sujeito ao escrutínio posterior do bispo de Roma. Tal como o líder da comunidade paroquial deveria ser escolhido pela própria comunidade local, ainda que tivesse de ser aprovado pelo bispo diocesano. Se assim fosse, provavelmente teriam sido evitados muitos dissabores.
Por último, a formação dos candidatos deve ocorrer no contexto das comunidades concretas e nunca num sistema de seminários que os isole da vida. É para liderar as comunidades que eles se preparam, não para pertencerem a uma casta especial que lhes abra caminho a uma “comunidade sagrada”, distinta das comunidades cristãs locais, como se tivessem adquirido uma identidade cristã superior, num patamar existencial a que os restantes cristãos não podem ter acesso.
Jorge Paulo é católico e professor do ensino básico e secundário.