
“Existe na Igreja um défice de definição sobre o que se deve entender por “pessoas adultas vulneráveis”, prevalecendo, no modo de lidar com estes casos, um peso maior da condição de adulto do que da situação de vulnerabilidade.”
O ano de 2023 tem vindo a revelar-se como um dos mais negros no que respeita a abusos sexuais e de poder na Igreja Católica. Para além do caso do padre jesuíta e artista Marko Rupnik, que continua sem desfecho por parte da Companhia de Jesus, conhecemos o agravamento da situação em França, com o envolvimento assumido de vários bispos; dos estudos e relatórios desenvolvidos em países como Portugal, Espanha, Itália, dioceses alemãs e de alguns estados dos EUA. Presentemente, um dos focos mais graves é o caso da Bolívia.
Um facto que causou grande impacto foi a demissão do padre jesuíta Hans Zollner da Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores, queixando-se de inoperância e falta de transparência no seu funcionamento, o que obrigou a Comissão a tentar corrigir a rota, na reunião que realizou já esta primavera.
O Vaticano não tem saído bem de muitos destes casos, apesar de os abusos serem uma das batalhas do pontificado de Francisco. A falta de transparência e a lentidão dos dicastérios da Cúria, que lidam mais diretamente com estes processos, desdizem o que o Papa diz que deve ser feito.
As revelações de abusos sistemáticos com pessoas adultas vulneráveis emergiram com força, este ano, configurando-se como uma nova tendência e uma nova “frente” que pode estar ainda no seu começo. Foi o caso extremamente grave dos abusos perpetrados durante largos anos por Jean Vanier, Thomas Philippe e a Fundação L’Arche; da revelação dos processos de abusos de freiras por padres em algumas regiões de África, mas também na Europa; abusos por superiores e superioras em congregações religiosas, como na Comunidade Loyola, a que esteve inicialmente ligado o padre Rupnik, ou nos recentes casos das beneditinas de Montmartre, em França.
Existe na Igreja um défice de definição sobre o que se deve entender por “pessoas adultas vulneráveis”, prevalecendo, no modo de lidar com estes casos, um peso maior da condição de adulto do que da situação de vulnerabilidade. Isto significa que a lógica das coisas é partir do princípio de que quem é adulto, forçosamente dá o seu consentimento a relações sexuais ou a outras de qualquer tipo.
A vulnerabilidade é identificada com (e reduzida a) doença, debilidade ou deficiência física ou intelectual, e quadros análogos, deixando de fora situações em que as relações de controlo, de abuso de poder podem originar graves crimes de abuso espiritual, psicológico, moral e até económico. A tipificação de princípios e critérios a respeitar neste âmbito, na vida e funcionamento das congregações religiosas e nas instituições e serviços onde membros seus, sobretudo mulheres, desenvolvem trabalho são urgentes para ajudar a prevenir abusos e a lidar de forma mais justa e humana com as situações.
Outro aspeto problemático para que vários observadores têm chamado a atenção é a tendência das instâncias hierárquicas para isolar o problema dos abusos da vida mais geral da Igreja Católica. Como se este problema pudesse contaminar a vida cristã vindo de fora dela e devesse, por isso, ser abordado à parte, e se possível de forma discreta.
Exemplo disso é a pouca articulação que existe entre aquela que é considerada uma das maiores crises do catolicismo, se não mesmo a maior, desde a Reforma protestante, ou seja, a crise dos abusos, e aquela que é a grande reforma que o atual Papa se esforça por incentivar, isto é, uma Igreja pautada pela sinodalidade. Observando o que se tem passado, são raras as abordagens que, de forma expressa e decidida, articulam os dois processos. E não faltam motivos para os articular – desde logo, o do clericalismo na Igreja, que é um dos fatores sistémicos que produz o clima dos abusos sexuais e é um dos maiores obstáculos à reforma da Igreja, implícita no processo sinodal.
O caso mais evidente que contraria esta tendência é certamente o Caminho Sinodal adotado pela Igreja Católica na Alemanha. Foi a dimensão quantitativa dos abusos e a consciência da sua componente sistémica que levaram a abrir esse caminho, antes ainda de o Papa convocar o atual Sínodo sobre a Sinodalidade. Pode discutir-se se os responsáveis o fizeram da melhor forma. Mas não se pode negar que foram lúcidos ao estabelecer a relação entre as duas realidades. E a vontade de dialogar com Roma, no caminho feito – certamente ousado – não foi na Alemanha que encontrou maior resistência.
A Igreja francesa não estabeleceu uma relação explícita e central com a sinodalidade, quando adotou um plano de respostas aos desafios resultantes do relatório da Comissão Independente sobre os abusos naquele país. Mas, na prática, foi isso que fez, à escala nacional, desde finais de 2021, a Conferência dos Bispos de França e, de forma mais radical, a Corref, Conferência dos Religiosos e Religiosas de França.
Nas respostas que estão a ser dadas à violência sexual e aos abusos de poder na Igreja, vai uma grande distância entre os que os veem e assumem como casos individuais de maçãs podres ou malinadas e os que os tomam como expressão de um modo de conceber e de pôr em prática o que é ser Igreja, resultante em grande medida, de um sistema clericalista e autorreferencial (e afirmar isto não significa perder de vista que muitos padres e bispos são testemunhos vivos de Jesus e do Evangelho).
As duas dimensões são importantes. Menosprezar a segunda, no entanto, significa que, uma vez eliminadas as maçãs podres ou malinadas, a Igreja pode continuar a ser aquilo que sempre foi. A cultura do encobrimento e do secretismo não será tocada e não diz respeito apenas aos abusos sexuais. É uma cultura que desacredita a Igreja e a impede de ser um verdadeiro serviço às pessoas, sobretudo as que mais dela precisam.