
Ilustração do artista TVBoy, sobre os abusos sexuais na Igreja. Foto: Direitos reservados.
Estava já escrita esta crónica quando me deparei com o inquietante e excelente artigo de Fernanda Câncio no DN sobre a magna questão dos crimes de abuso sexual na Igreja Católica. Mesmo descontando algum anticlericalismo (infelizmente bem alimentado com as munições fornecidas gratuitamente pela Igreja) bem como eventuais lapsos por enviesamento de análise sobre as Concordatas em contextos potencialmente adversos (reduzindo o tema dos privilégios nelas constantes ao propositado encobrimento dos crimes sexuais quando poderão estar em causa medidas protectoras de natureza totalmente distinta), o artigo é um drástico resumo de malfeitorias históricas a que nenhum católico deve fechar os olhos, ou olhar para o lado, ou denegar, ou esquecer, ou fazer de conta que não existe, ou considerar que é tudo inventado ou distorcido, porque todo o texto tem fundamento, aliás bem documentado. Antecipo reacções adversas, particularmente pela Igreja administrativa; mas a revolta deveria ser canalizada não contra a jornalista mas contra as tais munições providenciadas pelos abusadores sexuais e seus encobridores do insensível aparelho da Igreja administrativa.
Não admirará muito, perante o que se sabe e se ouve agora diariamente, portanto, que aquela ande aflitíssima, desorientada, em convulsão interna, com palavras e silêncios a mais ou a menos, consoante o momento e a coisa, e quase sempre à defesa, eivada de forte espírito corporativo. Espera ela, aparentemente, que se continuar a assobiar para o ar, o ar dissipará o problema – mesmo que leis da física, da moral, da ética e o mero senso comum nos digam o oposto. Sobre isto, várias pessoas me disseram, sem que eu lhes perguntasse nada: Que tristeza! E nem uma palavra de conforto; onde está a mensagem cristã? Num momento em que as pessoas estão sedentas de sentido, não há uma palavra nova, é uma clivagem entre pregação e vida.
O passivo acumulado por todos nós, Igreja colectiva feita de história, memória (ou falta dela), pessoas, organizações e comunidades, faz que a procissão apenas tenha acabado de entrar no adro, não tendo o seu trajecto sido programado – não é programável –, e desconhecendo-se quanto tempo demorará o cortejo de horrores a passar. Já percebemos (excepto os gestores do culto) que será longa a procissão e que causará dor, como tinha vaticinado em 11 de Novembro 2021 num artigo no DN: “Haverá estragos e muitíssima dor, desde logo porque somos todos colocados em causa”, numa altura em que tentávamos acordar o episcopado para o imperativo de criar uma comissão independente para investigar os crimes de abuso sexual (não apenas os sobre as crianças e jovens, mas todos). Pois aqui está ela, a dor, de novo, a infligir danos, neste Verão escaldante de todos os pontos de vista, com os grandes jornais e televisões a fustigarem.
Este é um novo ciclo em que somos atingidos sobretudo pela fragmentação das bombas deflagradas no passado, e respectivas reacções eclesiais, de novo generalizadamente insatisfatórias, pelas palavras e omissões, depois de dois outros recentes: em 2021, o da demonstração social de irritação e hostilidade à Igreja à boleia do relatório sobre o caso francês, e dos extravagantes dislates de bispos portugueses (sintomas de patologia que deveriam ter originado despedimento do seu múnus por justa causa); e, no primeiro semestre de 2022, o da esperança dada pela criação da Comissão Independente.
Ao contrário dos ciclos anteriores em que se notou algum esforço por absorver criticamente as ondas de choque, nestes dias o aspecto mais notório e predominante voltou a ser, basicamente, o da resistência, passiva ou activa, ao reconhecimento de um gravíssimo problema e suas consequências. Sim, há muitos progressos, mas também há quem nunca tenha saído do mesmo lugar, um lugar onde nunca deveria ter estado.
Um triste exemplo surge pela mão da serventuária RR (um caso inamovível de his master voice) com o elucidativo título “D. Daniel Batalha espera que casos de abusos sirvam de alerta também ao Estado” (12Ago2022).
Presumia-se que a esta hora já os bispos teriam compreendido o básico da questão, que é que devem ser agentes activos da procura da verdade e da mudança; mas ainda há quem insista (com a subtileza de que é capaz) em manobras de diversão, desvalorizando e relativizando o problema, ostensivamente saltando por cima das suas origens. A sua ignorância (indesculpável), o seu cinismo (ainda menos) ou a sua incompetência cognitiva (inadmissível num bispo) são, em qualquer dos casos, aflitivas. Desviar a atenção do problema eclesial para o exterior é tão intolerável como o encobrimento. Desconhecem-se quaisquer evidências de que a sociedade civil e as organizações públicas sob a tutela estadual directa ou indirecta contenham um problema sistémico de grande escala na criação e encobrimento de abusadores sexuais, que é precisamente o caso da Igreja. Evocar que a maioria dos casos deste tipo ocorre no seio da família (a partir de vulgaridades lidas algures, mal percebidas e mal assimiladas) não tem qualquer equiparação válida porque os casos desse tipo são resultado de – chamemos-lhes assim, para simplificar – anomalias bem tipificadas na literatura científica, que em momento algum colocam em causa a ideia de família. Ou quererá a Igreja fazê-lo, revolucionando de súbito a sua própria doutrina?
Muitos outros exemplos abundam nas redes sociais onde, com filtros diminuídos ou nulos, os sectores conservadores se afadigam na defesa das teses da igreja funcionalista, insistindo pela (ora conveniente) presunção da inocência dos padres suspeitos, na tese de um grande ataque à Igreja (por quem? pela comunicação social, evidentemente), ou simplesmente na defesa corporativa e descerebrada de tudo o que cheire a sacristia (prescindindo-se, por inutilidade, de definir ou caracterizar o seu conhecido odor).
Precisamos ser ferozmente contra este quadro de desresponsabilização, porque, evidentemente, não é de nada disso que se trata. Do que se trata então?
Trata-se de reconhecer que existiu e ainda existe um problema criminal:
- com duas facetas – o cometimento de abusos e o seu encobrimento ou dissimulação – qualquer delas intoleráveis;
- que é um mero sintoma de uma adulteração da Igreja de Cristo, Cristo este cuja mensagem perdeu espiritualidade e centralidade, tornando-se instrumental para jogos de poder profano e organizacional;
- que é consequência directa de uma combinação fatal de factores e aparentemente única (outros cristãos não têm experimentado o dramatismo dos católicos);
e que nessa combinação entra:
- um ethos católico que produz uma cultura de poder fortemente enquadrada numa organização piramidal não (ou anti?) democrática;
- uma visão profundamente tenebrosa e distorcida da sexualidade humana, que perdura há séculos e que hoje não tem qualquer razoabilidade continuar a ser defendida;
- uma dificuldade em encontrar vocações para padres (e não para sacerdotes, que desses estamos exaustos de os aturar) e de os seleccionar e formar devidamente, o que deverá ser causa e efeito, círculo que é urgente romper.
Em breve resumo, é disto que se trata, não de qualquer outra coisa.
Mesmo com estes dados adquiridos, há muito para estudar e compreender, porque se é relativamente fácil perceber os encobrimentos destes crimes e destes criminosos, é substancialmente mais árduo alcançar como funcionam detalhadamente os mecanismos de fabricação de abusadores.
Escrevi no referido artigo de Novembro de 2021 que “um fenómeno criminal deste tipo, de tão grande prevalência e incidência (em todos os continentes e, portanto, culturas) revela-se indissociável das formas de organização, de construção do poder e do seu exercício no interior da Igreja. É, pois, um problema sistémico”. Ora mais tarde, quase com as mesmas palavras – como se fosse um sinal de que não haverá outras – veio Hans Zollner, padre jesuíta e psicanalista, confirmar que o problema nasce dentro da Igreja, e cristalinamente sublinhar que “É surpreendente e perturbador que os mesmos mecanismos – os mesmos, não semelhantes, mas os mesmos – de defesa da instituição, à custa da consciência sobre o sofrimento das pessoas, tenham estado em acção: negação da realidade ou negligência, falta de vontade de a enfrentar realmente” (ver 7MARGENS).
Não se trata de um padre marginal, periférico, mas alguém originário do centro da Igreja, nomeado pelo Vaticano para investigar o tema dos abusos sexuais na igreja.
Ainda o 7MARGENS (se não aqui, onde mais?) traz-nos notícias recentes sobre um documento sinodal dos bispos alemães que justamente aponta “razões sistémicas e não apenas fracassos individuais” na origem dos abusos sexuais tornando-se claro que tal implica rever “como lidar com o poder e como controlar o poder e os poderes decisórios na Igreja” e “o perfil do ministério e o estilo de vida sacerdotal”, aliás na linha do que o relatório dos bispos franceses referia sobre as origens do problema: a causa é sistémica. É disto que se trata!
Estas posições corajosas e clarividentes dos franceses e alemães – e certamente de outros países – são claramente sinodais e contrastam com o padrão conhecido que temos visto em Portugal.
Não podemos deixar de nos interrogar sobre a enorme dificuldade de introspecção da Igreja e a sua opção por demasiadas vezes relativizar, esconder ou dissimular o problema. Ela decorre da sua própria organização e cultura clericalista, própria da Igreja administrativo-funcionalista; será particularmente difícil que ela própria proponha e leve a cabo uma reflexão que a vai colocar directamente em causa. Difícil, mas não impossível.
De resto, não existe alternativa, e a Igreja dos valores e da espiritualidade tem que encontrar meios legítimos e eficazes de pressionar mudanças: se o problema é sintomático e sistémico, para o eliminar, ter-se-á que se eliminar o sistema, ou pelo menos transformá-lo ao ponto de, progressivamente, se tornar irreconhecível por já ser outro. O excepcional Papa Francisco parece sonhar com um processo sinodal que nos faça iniciar tais viagens. Como ajudar Francisco, como ajudar a Igreja?
Concluindo. A propósito desta terrível procissão, como corre o processo sinodal? Como está a Igreja a preparar-se para a prevenção e controlo de novos casos? Será que não percebe que por mais comissões diocesanas que tenha a funcionar, não é deste modo que resolve a questão? Será que não alcança que se o problema é sistémico, o sistema terá que ser mudado, até porque os abusos sexuais são uma perversão, entre muitas outras, da sua cultura e organização?
A resposta está longe de ser tranquilizadora.