
Foto do dicionário caseiro que Isabel Melo tem para se entender com a refugiada que acolheu.
Eu e o meu namorado vivemos na Alemanha e decidimos desde o início da guerra na Ucrânia hospedar refugiados em nossa casa.
Pensámos muito: nenhum de nós tem muito tempo disponível e sabíamos que hospedar refugiados não é só ceder um quarto, é ceder paciência, muita paciência, compreensão, ajuda com documentos, conhecimento de língua (não materna também para nós) e burocracia (mal, porque não somos refugiados, por isso é também novo para nós).
A única condição que pusemos foi serem dois. Duas pessoas que vêm da mesma situação não se sentem sozinhas e apoiam-se mutuamente. Quando começámos a pensar em condições que nos pudessem facilitar a vida rapidamente saltámos para o jogo das compatibilidades: já agora era bom se falassem inglês e se fossem vegetarianos porque nós também somos. Decidimos que não, que uma pessoa que não fale inglês, não seja vegetariana e esteja sozinha também tem direito a ser acolhida. Ainda assim mantivemos a condição de serem duas pessoas, porque sabíamos que não teríamos a disponibilidade emocional para apoiar uma pessoa sozinha.
Obviamente saiu-nos tudo ao lado: calhou-nos um casal de 25 anos, de Mikolaiv, que não falava uma palavra de inglês, não tinha email e não percebia o porquê de ter de ir a cinco sítios diferentes registar-se para ter ajuda. Além disso, ao fim de uma semana, ele conseguiu trabalho nos EUA e ela ficou sozinha (contrariando a única condição que mantivéramos, a de não acolher pessoas sozinhas).
A comunicação passa sempre por dois níveis de dificuldade: a língua – para a qual usamos o Google tradutor inglês-russo (língua comum na região), nunca sabendo se a tradução é fidedigna; e os conceitos – compreensão da burocracia alemã, difícil até para um alemão, imagine-se para pessoas que não tinham email.

Foto do dicionário caseiro que Isabel Melo tem para se entender com a refugiada que acolheu.
É difícil, é muito difícil e não me arrependo. É frustrante, é muito frustrante para nós e é mais para ela. Ter deixado tudo para trás, casa, família (mãe), o ganha-pão, estar sozinha num país em que não fala nenhuma das línguas possíveis, dificuldade de confiar nos outros, assinar documentos que não percebe. Não pode ser fácil. Nem para ela, nem para nós.
E mesmo assim não me arrependo. Ajudo sem fazer perguntas porque gostava que fizessem o mesmo por mim. Ajudo sem fazer perguntas porque TODOS temos direito a uma vida digna. Nem todos tivemos a sorte de nascer no lado bom do mundo. O Artº 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos diz: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.” Talvez devêssemos mudar o nome do documento para Declaração Universal dos Direitos Ocidentais.
Isabel Melo, cidadã do mundo, trabalha como educadora em Munique (Alemanha).