
“Uma Igreja que parece não conseguir responder às inquietações humanas, a julgar pelas igrejas vazias.” Foto © Arquivo Vatican News
Caminhamos em tempos desafiantes para a Igreja Católica. É uma Igreja que parece não conseguir responder às inquietações humanas, a julgar pelas igrejas vazias sobre as quais Tomáš Halík já nos escreveu e pela perda progressiva de referências cristãs na sociedade em geral. O “adulto 4.0” contemporâneo, descrito por Armando Matteo (Converter Peter Pan, Paulinas, 2022) como adulto sem transcendências, sem verdades, sem limites, sem moral e sem política, parece ser uma das causas desta crise – dentro e fora da Igreja. A sensação de auto-suficiência carrega em si uma expectativa de total liberdade e realização plena (e, por isso, será tão apelativa), descartando Deus como algo desnecessário ou, para alguns, enganador e que impede a realização do indivíduo.
Líamos também recentemente sobre a perda de meio milhão de fiéis católicos na Alemanha no ano passado. É preocupante. Não por se tratar de uma questão de “número de sócios” – pois esse não é de todo o ponto principal – mas por estes números serem reveladores de realidades de crise, de situações a resolver.
O afastamento que alguém pode experimentar em relação à Igreja, como reacção à imperfeição do corpo que a compõe é, por um lado, compreensível – já que se abrem brechas que põem em causa a autoridade moral da instituição e revelam problemas complexos e enraizados. Mas é, ao mesmo tempo, expressão de uma imaturidade de fé que confunde situações específicas com um todo mais abrangente.
Se deveria existir uma unidade e complementaridade perfeitas entre a composição multifacetada daquilo a que chamamos Igreja (enquanto instituição formal e hierárquica, enquanto corpo formado por pessoas com qualidades e com fragilidades, e ainda enquanto imagem e corpo de Deus), a verdade é que essa perfeição é altamente improvável. Há que assumir que, pelas fragilidades humanas, surgem erros que mancham o que deveria ser imaculado e trabalhar para fazer o melhor possível a partir das situações de crise. Só assim se conseguirá uma imagem da Igreja consentânea com a mensagem que quer transmitir; não por precisarmos de uma perfeita e apelativa fachada publicitária, mas para sermos verdadeira expressão de uma vida que nos é oferecida e que gostaríamos de partilhar com todos. Diz Timothy Radcliffe que “quando a Igreja parece estar a ensinar do alto, longe das dificuldades das pessoas comuns, não está a ensinar nada”. (Ser Cristão Para Quê?, Paulinas, 2011)
Há uma série de ideias associadas à Igreja que revelam o desfasamento entre a imagem e a realidade. Se é desinteressante quando acontece do ponto de vista do observador externo, pior é quando essas ideias são aceites e reforçadas como verdadeiras pelas próprias comunidades cristãs. Nuns casos será por má intenção, mas acreditamos que na maioria das situações não será mais que um extremo zelo e boa vontade, embora com ferramentas desadequadas. Por exemplo, apenas para ilustrar com um caso simples, num aspecto tão essencial como a catequese, onde as crianças tantas vezes se vão afastando por não encontrarem aí uma mensagem que lhes faça sentido – a mensagem é sempre a mesma, mas há que encontrar a maneira correcta de comunicar com cada pessoa, com cada grupo, nos contextos de vida de cada um. A ausência de cuidado nestes aspectos resulta em equívocos que afastam e que fazem da Igreja um espaço muito diferente do que deveria ser e transmitir.

Confunde-se – para percorrer alguns destes desfasamentos que referíamos acima – a Igreja Católica com uma ideia de comunidade perfeita, gerando uma inevitável desilusão, porque todos somos imperfeitos. Se por um lado não faz sentido aceitar estritamente a imperfeição como expectável e imutável (desvalorizando um caminho constante de conversão), por outro lado também não fará sentido o contrário: ver essa imperfeição como algo tão inesperado que corrompe uma imagem utópica à primeira oportunidade. Porque a Igreja não é perfeita, mas tenta caminhar nesse sentido.
Perde-se também a linguagem com que se deveria falar de fé – perde-se a capacidade de ler as imagens, esculturas, pinturas, textos e o que representam; é uma perda de cultura geral para toda a sociedade, mas é sobretudo uma perda adicional para os crentes, que aí deixam de ter oportunidade de ler testemunhos de fé gravados por outros na Arte e na Palavra em épocas passadas.
Misturam-se questões disciplinares – como quem deve ser aceite, com que regras e em que moldes (questões que poderíamos enquadrar num campo formal) – com conteúdos essenciais e dogmas que definem a nossa experiência religiosa, erguendo barreiras a uma Igreja que verdadeiramente poderia ser para todos. As regras são importantes enquanto funcionam como guia, ao serviço do florescimento de cada um, dos seus dons, da sua capacidade de ser parte da comunidade. Quando excessivas, transformam-se num portão que impede as ovelhas tresmalhadas de entrar.
Lê-se ocasionalmente a Igreja Católica como espaço da experiência humana dominado pelo sentimento de culpa e pelo cumprimento de obrigações e rituais quando o cerne da fé está no pólo oposto, como experiência de liberdade em que somos convidados a um caminho que pode tomar inúmeras formas e que integra a criatividade humana, um caminho que, em última instância, podemos recusar. Os rituais e a consciência de si mesmo face a um conjunto de valores são um apoio tangível de que precisamos para ir navegando na compreensão do incompreensível. Tudo isto é, portanto, algo essencial, mas não como fim em si mesmo, pois aí certamente seria um peso e não uma semente de onde pode germinar uma vida mais plena.
Apelida-se a Igreja de retrógrada, focando os pontos em que de facto existiu (ou existe) insistência em caminhos menos apropriados. Assim se esquecem aspectos de grande inovação, desde logo começando pela própria radicalidade da Boa Nova de Jesus, mas passando depois por campos tão distintos como os avanços científicos ou a defesa social dos mais desprotegidos.
Precisamos de cuidar da Igreja, primeiro por dentro, sendo missionários para nós próprios. E, depois, cuidar por fora, sendo missionários a “todas as pessoas de boa vontade” para mostrar aquilo que a Igreja realmente é para nós. Enquanto não soubermos aliar estas duas missões, as notícias que se hão-de salientar serão seguramente as que menos interessam.
Temos a JMJ Lisboa 2023 à porta. Entre tantos afazeres e acontecimentos, não deixemos escapar aquilo que é realmente importante. Recordando a passagem bíblica: «Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas; mas uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada.» (Lc 10,41-42).
Saibamos também nós trabalhar para tornar este encontro mundial numa festa magnífica, não esquecendo o seu propósito mais central.
João Valério é arquiteto e organista.