
“Vivendo este tempo sem medo, descobrimos uma beleza desconfortável nessa marca de água da contradição: promete fracturas, e revela possibilidades.” Foto: Direitos reservados.
Quando, daqui a muitos anos, contarem a história deste início de século, desconfio que dirão que foi um tempo de contradição. Na verdade, desejo que o digam.
Se for mesmo uma trave-mestra deste tempo, há que aceitar que a contradição não se muda, não se reverte, não se gere. Tentar negá-la ou combatê-la de forma utópica é inútil e deixar-nos-á exaustos. Não adianta sequer ignorá-la. É um dado do problema, como nos ensinavam nas aulas de física.
Vivendo este tempo sem medo, descobrimos uma beleza desconfortável nessa marca de água da contradição: promete fracturas, e revela possibilidades. E morde, morde muito. No limite, a beleza está no convite exigente a posicionarmo-nos perante o que acontece no mundo e nos nossos pequenos mundos quotidianos e, com toda a radicalidade, perante nós próprios e perante Deus. É uma imensa porta para a esperança, basta querermos abri-la.
Um dos temas em que a contradição é flagrante é a relação com a passagem do tempo que estará, suspeito, ligada à nossa negação da mortalidade. O tema ocuparia milhares de páginas. Por agora, uma pincelada na forma como olhamos para a idade, em particular, para a idade adulta.
Pistas para a confusão
Os últimos anos têm-nos dado bons indícios da nossa relação disfuncional com a idade. Para além de todos os produtos que previnem, retardam, e/ou ocultam os sinais de envelhecimento – nada bate um bom SPF 50, aviso já –, estes três parecem-me ilustrativos.
A covid e os lares. A pandemia obrigou-nos a encarar um dos nossos maiores tabus: somos uma sociedade de velhos*. É provável que a maioria dos adultos de hoje chegue à velhice e se confronte com muito do que (n)os aterroriza, como a dependência, a solidão e o esquecimento, e a perda progressiva de capacidades físicas e mentais que caracteriza esta última etapa da vida humana. Teremos todos, muito legitimamente, medo da cultura do descarte. O que já não será tão legítimo, ou sequer avisado, é viver como se a velhice não nos dissesse já respeito.
A tarifa jovem. Até há uns meses, andava longe de um debate apaixonante: até que idade jovem: 29 ou 35 anos? Era preciso decidir a idade limite para a tarifa reduzida num acontecimento cultural. Horas de vida irrecuperáveis, mas deram que pensar. A tarifa reduzida faz sentido para quem tem rendimentos baixos e/ou instáveis. Agora, é aí que se espera que as pessoas estejam aos 29 ou, pior, aos 35 anos? Se for, a aparente benesse é perversa, não resolve o problema, e não dignifica quem a recebe.
E que mensagem transmite a quem pode pagar a totalidade do preço? Que ainda não precisa de assumir a responsabilidade de pagar o que pode? Acalmar ansiedades e prevenir crises de meia-idade precoces? Igualmente perverso, para além de promover o hábito de não pagar o valor justo pelo que se consome, imputando a diferença a terceiros. É bastante paternalista e infantiliza o público-alvo.
Greta Thunberg. Há dois anos, era a autoridade moral mundial em alterações climáticas. Muito mais eficaz que todo o IPCC** e os seus relatórios de 3675 páginas. Todo o fenómeno é para lá de fascinante, até pela dimensão religiosa que tem, e é curioso notar que a autoridade moral lhe foi reconhecida, em boa medida, por não ser adulta, por ser uma vítima das escolhas de outros. No fundo – e esteve implícito em muitas das conversas que tive – Greta não tinha cometido o pecado capital da vida adulta: fazer (más) escolhas e viver com elas, o que a autorizava a contestar as decisões tomadas pelas gerações anteriores, e a imunizava a qualquer escrutínio, num misto de inimputabilidade e santidade. É difícil encontrar melhor incentivo a não crescer: poder não escolher, para não ser responsabilizado. Numa visão menos cínica, é perfeitamente razoável.
No extremo oposto, o melhor argumento dos anti-Greta era também a idade: aos 17 anos não é possível ter uma opinião informada ou crítica sobre assuntos complexos. E claro que o é, dentro daquilo que os 17 anos de cada adolescente permitem.
Temos, portanto, publicidade anti-envelhecimento a rodos, uma incapacidade de lidar com a perda de autonomia física e mental que vem com a idade, incentivos públicos que convidam a uma assunção cada vez mais tardia da idade adulta, e adultos a reconhecer autoridade moral a adolescentes, porque os obrigam a confrontar com o peso das suas escolhas mais ou menos conscientes… há qualquer coisa de profundamente desconexo em tudo isto.

Então, e agora?
Agora, um aviso à navegação, que o tema é delicado: nada neste texto é um lamento pelos casamentos tardios, a falta de maturidade emocional e de compromisso dos jovens, a superficialidade das relações, a quebra da natalidade, a juventude perdida, os pais-helicóptero e as crianças mimadas (espero não me ter esquecido de nenhum cliché), ou um arranca cabelos pelo declínio do mundo ocidental. O desespero é a atitude anticristã por excelência e, além disso, o estado civil e a parentalidade são pouco relevantes para o que me interessa.
Interessa-me, isso sim, tentar perceber como olhamos para essa fase da vida a que se chama ser adulto e que papel podemos e devemos ter enquanto Igreja – aqueles que são cristãos, especialmente porque os católicos estão em caminho sinodal – no seu acompanhamento e desenvolvimento.
É que, por vezes, parece que chegámos a 2022 com a ideia de que ser plenamente adulto não é assim tão bom. Mas será mesmo assim?…
* a palavra idoso foi banida do meu dicionário.
** IPCC, sigla em inglês do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, das Nações Unidas .www.ipcc.ch
Marta Saraiva é diplomata, exercendo atualmente funções na Missão de Portugal junto do Conselho da Europa.