
“O meu pai, verdadeiro páter-famílias, achava que as raparigas deviam ser e só professoras.” Gravura: Escola Primária (1899), Magnus Enckell (Finnish, 1870-1925) / Wikimedia Commons
Durante toda a celebração da Eucaristia (onde foi lido o Evangelho de João 10, 1-10), há dias, tive à minha frente um casal de 40 e tal anos, com uma filha adolescente de uns 12, 13, movendo-se com lentidão de um lado para o outro.
Num determinado momento, o padre convidou «os meninos e as meninas para junto do altar, para rezarmos todos a oração que Jesus nos ensinou». Os pais relancearam o olhar para a filha, mas ela continuou a baloiçar-se.
Lembrei-me então que fora professora e me aposentara há cerca de 16 anos. Não foi uma decisão fácil, ia ser bastante penalizada na reforma, mas eu estava esgotada. Poderia apresentar um atestado, ir a uma Junta médica e receber o ordenado por inteiro. Mas esse processo que considero oportunista não me interessava.
Não era por acaso que estes pensamentos vinham à tona, com aquele pêndulo humano à minha frente. Desejava abstrair-me da miúda, mas era difícil.
Iniciei a minha prática profissional, completamente às cegas, como era costume, num momento muito confuso da vida política: Janeiro de 1975. Passados dois anos numa escola que ainda se chamava Técnica, fiquei afónica, pensando seriamente que aquilo não me convinha.
O meu pai, verdadeiro páter-famílias, achava que as raparigas deviam ser e só professoras. Simultaneamente, o 25 de Abril de 1974 trouxera-me mais actividade militante. Jovem, achava que estava a transformar o mundo.
Fiz das tripas coração e continuei. Concorri para todo o país para fazer estágio pedagógico e fui aterrar em Évora, no liceu e na «Reforma agrária».
Este comportamento da menina na missa recordou-me um aluno numa turma do 9º ano, nos anos 90. Sempre a torcer o tronco para trás, quase sem interrupção.
Uma auxiliar de educação elucidou-me: vivia muito perto da escola, e vinha com o irmão mais novo, chegando muito cedo. Portanto, pequeno-almoço à pressa ou sem comer nada. Viviam num bairro da «classe média», a mãe era divorciada e refugiava-se no sótão no seu atelier de pintura. Os rapazes estavam entregues à empregada.
Resolvemos então, eu e a professora de Francês, criar um «grupo de nível» a Português e a Francês para os alunos dessa turma, com fraca aprendizagem. Reuniões com os pais, acordos aqui e ali e um final feliz.
Ministros sucessivos

A ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues gostava de «fazer partidas» aos professores: criar uma avaliação para semear a discórdia, injustiças, atritos, divisões, invejas e até ódios; inventar a designação dignificante de «professores titulares». Enviar quase todos os dias portarias para as escolas, enchendo os Conselhos Directivos de papelada.
Sempre achei que os professores deviam ser avaliados. Quando Manuela Ferreira Leite foi ministra da Educação, criou um sistema de avaliação mais justo. O professor fazia uma experiência pedagógica na sala de aula, escrevia-a, justificando-a em termos científico-pedagógicos e defendia-a perante um júri. Havia uma classificação qualitativa. Foi um reboliço. Mas eu fi-la, embora nem precisasse, e gostei muito da experiência.
Um governo caía, vinha outro ministro de Educação e tudo o que esse fizera anteriormente – mal ou bem, isso não importava – caía como um baralho de cartas. Foi assim sucessivamente desde o 25 de abril até agora.
Como era possível construir um edifício sólido na Educação em Portugal? Os únicos ministros de Educação que queriam realmente dar solidez a este edifício – Roberto Carneiro e Marçal Grilo – acabaram por desistir da cadeira ministerial.
Claro que tinha de haver alterações. Mas na Educação houve um assalto de certos sectores de esquerda às direcções regionais e aos ministérios. De um ensino considerado caduco – o que era mentira – metamorfoseou-se em liberalizante, insistindo nos «direitos» dos alunos, mas não nos «deveres»; oralizante, riscando a escrita. Todos davam a sua opinião e achavam que todas elas contavam.
Sucesso escolar imposto

Facilitou-se o processo de aprendizagem e iniciou-se um retrocesso nos valores éticos, normativos e didácticos. Os adolescentes estão ainda em formação psicossomática e necessitam de ser dirigidos habilmente pelos adultos. Acontecia/acontece que a mesma turma recebe de diferentes professores normas – ou a falta delas – a nível de comportamento: o modo de estar numa aula, por exemplo. As atitudes diferentes dos adultos tornam os adolescentes inseguros acerca do modelo a seguir. Essa instabilidade reflecte-se na aprendizagem e na sua formação, como pessoa.
No Ministério de Educação do Governo de Sócrates, facilitou-se ao máximo a aprendizagem e os deveres dos alunos, impondo-se «por decreto» o sucesso escolar. Alterou-se radicalmente o conteúdo do exame de Português, no 12ª ano, por exemplo. A seriedade e a responsabilidade individual do aluno caíram abruptamente. Desapareceu o ensino nocturno.
A partir daí, a facilitação foi sem precedentes. Há cada vez menos exames no fim do ensino secundário, por exemplo.
Conflitos cada vez mais latentes, deformações a vários níveis, indisciplina, impassibilidade foram engrossando até chegarmos à actual greve de professores que se arrasta há quase um ano lectivo. Melhorar condições de trabalho, sem dúvida que é importante. Mas há muito mais, para benefício de quem ensina e de quem aprende. A dualidade professor/aluno é intrínseca.
O professor não pode perder o sentido da conveniência, da sua dignidade e responsabilidade profissional. Este aspecto é crucial e não está a ser considerado.
Maria Eugénia Abrunhosa é licenciada em Românicas e professora aposentada do ensino secundário.