
Segundo o Papa Francisco, há lições a tirar de Afonso Maria de Ligório, doutor da Igreja, que “não se detém na formulação teórica dos princípios, antes se deixa questionar pela própria vida”. Ilustração: Direitos reservados.
Multiplicam-se os sinais de que o Papa, ele próprio, não quer encerrar a questão das bênçãos aos casais homossexuais, as quais foram objeto de proibição taxativa da parte da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF). Algumas intervenções suas dos últimos dias coincidem no levantar de problemáticas subjacentes ao debate vivo que a CDF suscitou. A mais recente foi a mensagem que dirigiu esta terça-feira, 23, ao superior-geral da Congregação dos Redentoristas, a propósito dos 150 anos da proclamação de Santo Afonso Maria de Ligório como doutor da Igreja.
Afonso de Ligório nasceu em 1696 numa família nobre de Nápoles. Doutorou-se em Direito e exerceu oito anos como advogado, após o que largou a carreira e quis ser padre, contra a vontade do pai. Em 1762, foi nomeado bispo, tendo também ficado conhecido como escritor, teólogo e moralista. Faleceu em 1787.
Como refere a mensagem papal, Afonso é considerado “mestre e patrono de confessores e moralistas” e “renovador da teologia moral”. A bula do Papa Pio IX que o proclamou doutor refere que ele soube mostrar “o caminho seguro no emaranhado de opiniões conflituosas de rigor e laxismo”. Mas relevante, neste contexto, é a perspetiva e o modo de ser mestre, ele que teve um percurso pautado pelo rigorismo moral, mas que, “escutando a realidade”, ouvindo confissões, aprendeu a tornar-se “benigno”.
“Nas disputas teológicas, preferindo a razão à autoridade”, Afonso Maria de Ligório “não se detém na formulação teórica dos princípios, antes se deixa questionar pela própria vida. Advogado dos últimos, dos frágeis e dos rejeitados pela sociedade do seu tempo, defende o ‘direito’ de todos, especialmente dos mais abandonados e pobres. Este caminho conduziu-o à opção decisiva de colocar-se ao serviço das consciências que procuram, mesmo entre mil dificuldades, o bem, porque são fiéis ao apelo de Deus à santidade”, explicou o Papa.
“A coragem de escutar a realidade”
Segundo Francisco, há lições a tirar deste doutor da Igreja, nos dias de hoje. Numa sociedade em rápida mutação, o anúncio do Evangelho “exige a coragem de escutar a realidade, de educar as consciências a pensar diferente, em descontinuidade com o passado”. O Papa dirige-se, então, aos que se dedicam à teologia moral, aos missionários e aos confessores para lhes lançar vários desafios, nomeadamente “a entrar em uma relação viva com os membros do povo de Deus e a olhar para a existência a partir da perspetiva destes, para compreender as reais dificuldades que encontram e os ajudar a curar as feridas”
“A teologia moral – prossegue – não pode refletir apenas sobre a formulação de princípios, de normas, mas precisa de uma abordagem pró-ativa da realidade que ultrapassa qualquer ideia. Esta é uma prioridade porque só o conhecimento dos princípios teóricos, como nos lembra Santo Afonso, não é suficiente para acompanhar e sustentar as consciências no discernimento do bem a ser feito. É preciso que o conhecimento se concretize na escuta e no acolhimento dos últimos, dos frágeis e daqueles que a sociedade considera um desperdício”, adverte a mensagem papal, citando a exortação Evangelii Gaudium.
O bispo de Roma convida o seu interlocutor e, indiretamente, cada leitor seu para uma metodologia de abordagem da teologia moral que parte do “grito de Deus que pergunta a todos nós”: “Onde está o teu irmão? (Génesis 4.9). Onde está teu irmão escravo? Onde está aquele que tu matas todos os dias na oficina clandestina, na rede de prostituição, nas crianças que usas para mendigar, naquele que tem que trabalhar secretamente porque não foi registado?”. É que, reforça a mensagem, “a teologia moral não deve ter medo de ecoar o grito dos últimos da terra e torná-lo seu. A dignidade do frágil é um dever moral incontornável e inadiável. É preciso testemunhar que a lei significa sempre solidariedade.”
Esta escuta da realidade e este cuidado pelas pessoas, sobretudo as que mais carecem dele, são propostos pelo mesmo Papa que, ainda que sem expressar concordância, tomou conhecimento e deu assentimento à publicação de uma Resposta da Congregação da Doutrina da Fé impregnada de um espírito e de uma atitude visivelmente diversa. Vários analistas do Vaticano chamam a atenção para a aparente contradição, mas também para o facto de que os caminhos de mudança do Papa Bergoglio não se encaixarão nos figurinos de mudança a que estamos habituados.