
Uma bomba de fragmentação, cuja utilização já foi recusada por 111 países, mas não EUA, Rússia ou Ucrânia. Foto © U.S. Army, original print located at Rocky Mountain Arsenal, Commerce City, Colorado, Public domain, via Wikimedia Commons
Na última sexta-feira, a escassas horas de partir para a Europa e para a cimeira da NATO, o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou a decisão de enviar para a Ucrânia bombas de fragmentação (também designadas munições cluster), a fim de tornar mais operativa a “contraofensiva” das forças armadas ucranianas.
Estas munições distinguem-se por serem “bombas de bombas”, perfurantes e altamente destruidoras. O seu poder de liquidar vidas e bens é tal que representantes de 111 países de todo o mundo aprovaram, em 30 de maio de 2008, no quadro da ONU, a Convenção sobre as Munições Cluster,
um tratado histórico que preconiza a recusa do recurso a esse tipo de guerra e a destruição dos arsenais existentes nos oito anos seguintes.
Apesar dos apelos e diligências diplomáticas, os principais países fabricantes e utilizadores de munições de fragmentação, entre os quais a Rússia e os Estados Unidos da América, mas também a China, Israel, Índia ou Ucrânia, entre outros, recusaram-se a assinar essa convenção.
Além de serem utilizadas para “limpar terreno” até cerca de 30 km de distância, a deflagração destas munições espalha a destruição numa vasta área, a partir do ponto da primeira explosão (como se pode ver num vídeo da Al Jazeera).
As imagens do terror por elas originado puderam ser vistas, na Ucrânia, depois de terem sido lançadas pela artilharia russa. Mas, apesar do silêncio sobre o assunto, um relatório recente da Human Rights Watch revela que também o exército ucraniano as utilizou, apesar da negação oficial.
Esta ONG apelou à Rússia e à Ucrânia para que deixem de utilizar bombas de fragmentação e instou os Estados Unidos a não fornecerem essas munições a Kyiv. O apelo foi conhecido na véspera do anúncio da decisão do Presidente dos EUA, segundo notícia do diário britânico The Guardian.
Um fator agravante da ameaça que tais equipamentos representam é o facto de haver uma taxa de falhanço na fragmentação que faz com que uma parte das bombas que se aglomeram no cluster não expluda, deixando o terreno minado por muitos anos, com os perigos que isso representa para a população civil, neste caso o próprio povo ucraniano.
Vários foram os países, nomeadamente europeus, que mostraram incómodo ou oposição à decisão dos estadunidenses, entre os quais Portugal. Num comunicado conjunto, os ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Defesa Nacional lembram que Portugal é signatário da Convenção de Oslo sobre Munições de Fragmentação, que proíbe o uso deste tipo de armamento.
Mas a solidariedade com a NATO e com a Ucrânia levam a que posições políticas deste tipo se revelem vazias e inconsequentes.

É óbvio que o recurso a este tipo de munições representa uma escalada na guerra, mesmo que o Presidente Biden justifique a medida como “necessidade temporária” para acelerar a contra-ofensiva do lado ucraniano, enquanto os produtores de projéteis de artilharia convencional não asseguram o fornecimento.
Numa tomada de posição circunstanciada sobre este assunto, o jornal The New York Times considera que “esta é uma lógica inquinada e preocupante”, tendo em conta que a comunidade internacional estabeleceu regras que apontam de forma vincada para uma linha vermelha relativamente ao “uso de armas de destruição em massa ou armas que representam um risco grave e persistente para os não combatentes”.
“Diante da ampla condenação global das munições cluster e do perigo que elas representam para os civis muito depois do fim dos combates, essa não é uma arma que uma nação com o poder e a influência dos Estados Unidos devesse espalhar”, refere o texto[1], assinado pelo Gabinete Editorial do jornal (este Gabinete, autónomo da Redação, é constituído por um grupo de jornalistas de opinião “cujos pontos de vista são informados pela experiência, pesquisa e debate, bem como por certos valores permanentes” e já se manifestou contrário à posição do seu país de não subscrever a Convenção de 2008).
O Gabinete Editorial assume que sempre apoiou o fornecimento de armas à Ucrânia pelos Estados Unidos e seus aliados, dado que se trata de um país que luta “contra um invasor preparado para usar todos os tipos de armas, incluindo bombardeios indiscriminados de alvos civis”.
Para o jornal, todavia, “é errado” o fornecimento de armas que “grande parte do mundo condena justificadamente” por várias razões: mina o que para os editorialistas é “uma das razões fundamentais” para apoiar a Ucrânia: “defender as normas que garantem a paz e a estabilidade na Europa”, violadas pela Rússia “de forma tão flagrante”; e enfraquece o apoio dos aliados “que, até agora, apoiaram a liderança americana”.
“A chuva de bombas pode dar à Ucrânia uma vantagem militar a curto prazo, mas não seria decisiva e não compensaria os danos sofridos pelos civis na Ucrânia, agora e provavelmente nas próximas gerações”, refere o texto publicado esta segunda-feira, 10 de julho.
Por outras palavras, alimentaria a visão de que, mais do que ajudar o povo ucraniano, o objetivo seria ajudar a alimentar as indústrias de armamento e todo o complexo militar-industrial, cujo papel o Papa Francisco não se tem cansado de denunciar.
Restaria sublinhar, neste contexto, um ponto que vários setores da sociedade civil e das igrejas têm vindo a sublinhar: a urgência de introduzir a busca da paz justa nas agendas e nas iniciativas, nomeadamente do âmbito político, identificando os pontos que permitam sentar à mesma mesa os que hoje combatem, para se escutarem e dialogar.
[1] Editorial Board, The Flawed Moral Logic of Sending Cluster Munitions to Ukraine. The New York Times, July 10, 2023.