Fazer memória do padre Alberto Neto, lembrando-o às gerações mais novas, as quais, por isso mesmo, com grande probabilidade, não sabem de quem se trata, é o objetivo deste texto.
Completam-se neste sábado, 3 de julho, 34 anos sobre o assassinato, até hoje nunca esclarecido, do padre Alberto Neto. Tinha 56 anos de uma vida plena para Cristo e para os irmãos.
“Padre Alberto assassinado – a viagem do Algarve para Lisboa acaba em Águas de Moura. Morte trágica de sacerdote corajoso” – titulava a toda a primeira página A Capital, de 9 de julho de 1987. A macabra descoberta é feita na Estrada Nacional 5, junto a Águas de Moura, a três quilómetros de Setúbal. Lúcio Pinto, bombeiro voluntário em Valadares, no seu regresso do Algarve, acompanhado de sua esposa, para o carro e descobre um cadáver, a cem metros da berma da estrada, sob um sol abrasador, já em adiantado estado de decomposição, com o rosto e as restantes partes do corpo expostas à luz completamente negras. Avisa os seus colegas da corporação de Águas de Moura, que, por sua vez, chamam a Polícia Judiciária (PJ). É segunda-feira, dia 6 de Julho de 1987. Fora morto, havia dias, com um tiro de pistola na nuca, em circunstâncias misteriosas e até hoje nunca esclarecidas. O autor ou autores do crime, estranhamente, nunca foram, até hoje, capturados ou sequer identificados.
Trinta e quatro anos depois do seu desaparecimento de entre nós, muitos já não terão memória do Padre Alberto, podendo fazer sentido a pergunta: mas quem era o padre Alberto Neto? Procuramos recordá-lo.
Alberto Neto Simões Dias nasceu a 11 de fevereiro de 1931 em Souto da Casa, freguesia do concelho do Fundão e faleceu, assassinado a tiro, em Águas de Moura, em 3 de julho de 1987. O padre Alberto, como era conhecido por todos aqueles que tiveram o privilégio de com ele de perto conviver, destacou-se como educador e pelo seu papel no movimento católico progressista contra a Guerra Colonial sustentada de 1961 a 1974 pela ditadura fascista (Estado Novo).
Frequentou os seminários do Patriarcado de Lisboa em Santarém, Almada e Olivais. Foi ordenado padre em 15 de Agosto de 1957, ocupando o cargo de coadjutor da paróquia de Santa Maria de Belém, onde trabalhou com o padre José da Felicidade Alves. Foi professor brilhante em vários liceus, nomeadamente no D. João de Castro, Pedro Nunes e Padre António Vieira, em Lisboa, e na Escola Secundária de Queluz, posteriormente designada Escola Secundária Padre Alberto Neto em sua homenagem.
Entre 1965 e 1972 foi assistente diocesano da Juventude Escolar Católica (JEC, masculina), e da Juventude Escolar Católica Feminina (JEC-F), organizações juvenis da Ação Católica Portuguesa, dos estudantes do ensino secundário.
De 1978 a 1981 foi membro de Conselho Presbiteral do Patriarcado de Lisboa. De 1979 a 1982 foi pároco da paróquia de Belas e, posteriormente, até à sua morte, de Rio de Mouro. Em toda a sua vida, o padre Alberto exerceu o seu múnus sacerdotal pleno de generosidade, dinamismo e amor pelos irmãos que com ele se cruzaram.

O padre Alberto Neto a celebrar um batismo. Foto: Direitos reservados.
A 10 de Julho de 1987, as exéquias foram presididas, na igreja paroquial de Rio de Mouro, onde Alberto Neto era pároco desde há três anos, pelo então cardeal-patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro, que terminou mais cedo que o previsto uma visita oficial ao Vaticano. “O regresso a Portugal de D. António Ribeiro é justificado, oficialmente, como uma simples atitude de solidariedade humana, mas o facto não deixa de ser associado, em certos meios eclesiásticos, a uma homenagem da hierarquia católica ao trabalho pastoral do padre Alberto”, lia-se no Expresso.
As cerimónias fúnebres, presididas por D. António Ribeiro, acolitado por dezenas de sacerdotes de várias gerações que ali foram prestar a sua última homenagem, são precedidas de uma noite de oração. “Durante toda a noite o templo manteve-se repleto de gente, permanentemente, em vigília de oração”, escreveram os jornais da época.
Da homilia de D. António Ribeiro, proferida na missa de corpo presente, relevamos: “Esperamos, confiadamente, que as autoridades competentes consigam apurar toda a verdade dos factos e o causador ou causadores desta morte… Esperamo-lo confiadamente”, repetiu D. António Ribeiro que, não tendo “respostas humanas” ao porquê e para quê desta morte, elencou “respostas de fé”. “A morte do padre Alberto é um desafio à nossa capacidade de iniciativa cristã para instalar no mundo uma ordem de Paz e Amor que vença o ódio. Foi para isso que ele trabalhou toda a vida”, disse, acrescentando que Alberto Neto “se dedicara sobretudo aos mais pobres e carenciados” e ainda “ao oferecer a sua vida fê-lo por todos nós, por um mundo mais pacífico, mais justo e mais fraterno” (A Capital de 10-07-1987, pág. 13).
Infeliz e estranhamente, as esperanças de D. António Ribeiro não foram coroadas de êxito. Assim Ilídio Neves, em 2014, lamenta que a PJ de Setúbal nunca tenha conseguido deslindar o mistério. “A brigada era altamente eficiente, 90 e tal por cento dos casos eram resolvidos”, assegura. Por sua vez, a 26 de Outubro de 1987, o historiador e jornalista Fernando Piteira Santos escreve no Diário de Lisboa: “A projeção pública que o caso assumiu coloca a PJ numa situação delicada. Alberto Neto era uma figura prestigiada e respeitadíssima no mundo católico e cultural e dificilmente o curso das investigações deixará de ser lembrado. Não é possível deixar de dar uma satisfação à opinião pública. A cortina de silêncio é desprestigiante e é inaceitável”. (cit. em O Mistério do Pe. Alberto, Bruno Horta).
No Diário de Notícias de 12/07/1987, Óscar Mascarenhas escrevia, referindo-se ao assassínio de Alberto Neto, provavelmente, a melhor síntese que sobre o assunto foi escrita:
“A morte estúpida de um homem inteligente. A morte inglória de um homem histórico. A morte obscura de um homem de luz. A morte violenta de um homem de paz”.

Conheci bem e tive forte amizade com Alberto Neto nas décadas de 1960-80, até à sua partida para Deus, nas condições trágicas que acabo de descrever. Razões de espaço para estas memórias, não me permitem alargar, pormenorizadamente, os diferentes episódios que com ele partilhei. Faço assim apelo à fortíssima memória das celebrações eucarísticas em que participei com a minha mulher e os meus filhos (tenho o cuidado de dizer “participei” porque a uma celebração eucarística do padre Alberto não era possível dizer que se “assistia”) na Capela do Rato desde o começo, até ao início da década de 1970, quando fui mobilizado para a Guerra Colonial, em Angola.
A força e, simultaneamente, a profundidade teológica de tais celebrações, vinha do uso de uma linguagem litúrgica totalmente acessível ao povo cristão que nelas participava: foi com Alberto Neto que foram introduzidos nas celebrações novos cânticos com poemas fortemente expressivos e novos instrumentos musicais de fácil compreensão popular. O padre Alberto foi na década de 1960 um dos principais pioneiros da modernidade da Igreja Católica em Portugal. Quer nas suas homilias que arrastavam dezenas de fiéis, quer nos poemas cantados em plena celebração eucarística, Alberto Neto transmitia uma forte vibração interior, com um enorme poder de comunicação e grande sensibilidade poética.
Não tendo embora estado presente na hoje histórica Vigília da Paz, celebrada na passagem do ano de 1972 para 1973 (por se encontrar doente com uma pneumonia) foi toda a sua pregação nos dez anos anteriores na Capela do Rato que permitiu criar o clima preparatório dessa celebração.
Para o livro Testemunhos de Uma Voz Incómoda, editado sob orientação do padre Peter Stilwell, pela Texto Editora, em 1989 (edição infelizmente esgotada), pediram-me um testemunho subordinado ao lema “Repudiar a guerra para construir a Paz”. Desse testemunho, inserido a páginas 53/54 do livro, destaco:
“Amor e justiça pelos irmãos, coerência entre a palavra anunciada com desassombro e o quotidiano da vida, resumem a presença e a força do Alberto na comunidade em que se inseriu. Como é fácil compreender para todos os que viveram essa época, o testemunho do padre Alberto era claramente, e desde o primeiro dia, de condenação da guerra colonial.
Foi esse testemunho que alimentou muitos de nós quando, em momentos bem difíceis, nos vimos confrontados com a vida no quadro da guerra colonial em África.
Foi esse testemunho que nos permitiu, em muitas ocasiões, não perder, totalmente, as referências cristãs, e o sentido do amor e da justiça face aos irmãos, qualquer que fosse a sua cor!
Foi esse testemunho que nos alimentou nas horas mais graves e mais dramáticas em que, da decisão que só a nós competia tomar, dependeria muito o curso da vida de outros irmãos nossos.
A força que o Alberto sempre incutia na condenação da guerra permitiu a muitos de nós perceber que a Igreja não era só a posição oficial proclamada na época pela hierarquia em geral.”

Permita-se-me mais um testemunho pessoal, envolvendo o padre Alberto. Este em condições pessoais, especial e fortemente, marcantes na minha vida. Decorria o ano de 1972, estaríamos no mês de junho ou julho desse ano. Eu estava mobilizado, há cerca de um ano e meio, para a Guerra Colonial, no Leste de Angola. Recebi entretanto um contacto do Padre Alberto procurando acertar um dia para nos encontrarmos no Luso, sede da Zona Militar Leste.
Recordo com rigor esta visita ao Luso, onde nos encontrámos e gastámos uma noite em conversa sobre o possível evoluir da guerra, sem termos a consciência, no entanto, de que o seu fim estaria a cerca de dois anos de distância. Foi para mim mais um dos raros momentos altos que em muito ajudou a ultrapassar os traumas da guerra, na qual estava à época envolvido.
Havia alguém que, por pura amizade humana, eivada de espírito cristão, se deslocava para me visitar e esse alguém tinha a qualidade humana e o vigor espiritual de Alberto Neto.
Ao longo de dois anos de guerra, foi a única presença que encontrei da Igreja hierárquica. Tendo-se deslocado a Luanda por razões que nada tinham a ver com a guerra, fez questão de ir ao Leste, estar com um amigo que, ele sabia bem, precisava da sua presença. Como sempre, e também nessa altura, a sua coerência entre a ação e a palavra pautaram a sua vida. Era o Amor profundo aos irmãos que o movia, principalmente aos que mais necessitavam da sua ajuda e do seu exemplo.
Ter tido o privilégio de ter uma noite inteira de conversa com Alberto Neto ajudou-me a reconciliar comigo próprio e com o enquadramento de guerra que tinha de viver quotidianamente. Confessei-me no final da noite, pela manhã, e fiquei mais leve.
Por este exemplo de vida em coerência plena, que foi a tua, pela nova visão entre a Igreja e o Mundo que tanto ajudaste a criar em todos aqueles que contigo tiveram o privilégio de construir em comum, pela força do Cristo vivo que até ao momento final nos transmitiste e continua a alimentar a nossa vida: Obrigado, padre Alberto!
A tua presença continuará bem viva entre todos os que contigo aprenderam a repudiar a guerra, como primeiro passo para construir a PAZ!”
Termino esta nota de memória transcrevendo o Hino da Esperança, composto pelo Padre Alberto Neto, o qual me lembro, ainda hoje, de ter entoado centenas de vezes, nas celebrações eucarísticas na Capela do Rato:
Hino da Esperança
Ao amor que te arrasta
Não perguntes
Onde vais? Onde vais?
Irei contigo
Refrão:
No corpo da terra semearás
Flores de trigo, flores de trigo
E às bocas da fome anunciarás
Pão de paz, pão de paz
Irei contigo.
Se aos homens vais falar
Das injustiças
E da paz, e da paz
Irei contigo
Se as estradas que percorres
São de paz
E justiça, e justiça
Irei contigo
Se a esperança cai desfeita
A teus pés
Recomeça, recomeça
Irei contigo
Se as trevas da mentira
Te cercarem
Busca a luz, busca a luz
Irei contigo.
Fernando Gomes da Silva é engenheiro agrónomo.