
“Influência do maniqueísmo que parte de conceitos antitéticos: o corpo é fonte de perversão, do mal, simbolizado na mulher.” Foto: Max Ehrmann, Desiderata. Direitos reservados
Há cerca de onze anos regressei ao catolicismo que abandonara no fim da adolescência devido a uma grande desmotivação.
Percorri vários caminhos, cheguei a encruzilhadas, mas a figura de Jesus nunca me abandonou. Lavei feridas, desenganos, ilusões e estou muito grata a todos os que me ajudaram. Significa que a Igreja, apesar do que veio à luz recentemente, continua a ser um espaço muito importante na cultura ocidental.
Quanto aos crimes de pedofilia – envolvendo crianças, adolescentes e em percentagem menor mulheres jovens -, abuso sexual, violação, cumplicidade e encobrimento, não me surpreenderam. Acontecera noutros lugares do planeta.
A dor das vítimas deve ser insuportável. Nada pode ficar impune e todos os católicos devem ter um papel muito importante. Não esperar que a hierarquia da Igreja altere a situação. É este apelo que faz o Papa Francisco, incitando todos a participar no Sínodo.
Não creio que todos os clérigos que abusaram sexualmente sejam verdadeiros pedófilos, mas usaram sadicamente do poder que tinham face às vítimas.
Concluiu-se que tudo começou pelos seminários que albergaram adolescentes num ambiente de caserna, sem anteverem um rosto feminino. Parece também não haver dúvidas que a relação entre homem e mulher, na Igreja Católica, tem de ser radicalmente alterada.
Não se trata só de dar à mulher o lugar «dos afectos», ficando o homem com «o poder». As mulheres devem estar também na direcção eclesial, tal como aconteceu nos primórdios do cristianismo, em que os cristãos se reuniam em casas particulares para a refeição fraterna, a agápê. Quem dirigia essa pequena comunidade era o dono ou a dona da casa.
Deste modo, segundo Paulo de Tarso, «não há judeu nem grego; não há servo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo» (Gal.3, 28).
Por fim, o celibato não obrigatório dos líderes ordenados. É uma opção pessoal. Não sou contra o celibato.
O Amor é tudo, o egoísmo é zero
O eros, em grego clássico, significa o amor; foi e é ainda diabolizado pela Igreja Católica, reduzindo-o ao sexo.
Influência do maniqueísmo que parte de conceitos antitéticos: o corpo é fonte de perversão, do mal, simbolizado na mulher. O discurso pode ter mudado, mas a ideia, na prática, prevalece, embora haja outros factores a considerar na resistência do catolicismo em não ordenar as mulheres.
O eros, a agápê já referida, a amizade, o sorriso, a ternura, o afecto do coração, a alegria do amigo ou da amiga, a cordialidade, a simpatia, a ternura, o abraço, o beijo, TUDO se mistura na plenitude do encontro com o outro.
Não tenhamos dúvidas acerca disto. Os franceses usam a expressão amitié amoureuse que traduz esta ideia.
«Por vezes o meu corpo e a minha alma doíam com o desejo pela mulher». (Tomás Halík, Diante de Ti os Meus Caminhos, ed. Paulinas)
Nefasto é o «baixo amor que aos fortes enfraquece», no dizer de Camões: o desejo fortíssimo da posse.
A força do eros é vital, potente. Se em alguns casos não for transformada em energia espiritual – e é muitíssimo difícil, é necessária uma grande força do espírito, uma autodisciplina bem treinada – esse bloqueio emocional pode levar a uma sexualidade doentia.
«Beija-me com os ósculos da tua boca! Porque os teus amores são mais deliciosos que o vinho / e suave é a fragância do teu perfume…»
Este é um excerto do Cântico dos Cânticos, o mais belo canto do Antigo Testamento, acerca dos jogos do Amor entre um homem e uma mulher.
Muitos sectores da Igreja interpretam-no de outro modo. Está escrito na Bíblia dos Capuchinhos (ed. 1969): «… é um poema do mais alto misticismo, embora expresso com imagens que podem desnortear os que não estão familiarizados com a linguagem profética acerca das núpcias de Deus com o Seu povo».
Concede-me ser amada por muitos
Esta afirmação é de Sta Teresa de Ávila (séc. XVI), mística, reformadora do Carmelo. Aconselha às suas irmãs o amor e a amizade: «Um meio excelente para saborear Deus é justamente a amizade com os amigos.»
Não foi isso que fez Jesus, na sua peregrinação por este mundo? Ele é o «noivo» esperado e por isso o amor, a fraternidade, o júbilo estão sempre presentes na confraternização com os discípulos – homens e mulheres – e as multidões.
Tocar e ser tocado, eis o que Jesus fez na sua infinita misericórdia. Por mulheres, inclusive – acto considerado herético pelas autoridades religiosas do Templo.
Elas beijam, perfumam o seu corpo, secam com as suas longas cabeleiras os seus pés, no meio da alegria do encontro e da refeição, como sinal do seu messianismo. Elas são as únicas que o acompanham ao calvário, assistem à sua agonia e sepultamento e é depois Ela, Maria Madalena, que vai apregoar que Jesus é o Ressuscitado aos discípulos escondidos.
No momento extremo em que se reúnem o fim de uma vida e a morte – o início do mistério – lembramos quem amamos, quem nos deu o filtro do olhar do amor, da amizade, do sorriso, da alegria compartilhados. Para sempre.
(Foram consultados na elaboração do texto: Aquilo Em Que Creio, Hans Küng, Temas e Debates; Os Beijos Não Dados / Tu És Beleza, Ermes Ronchi, Paulinas; «Sem a pressão dos fiéis a Igreja não se emendará», artigo de António Barreto, Público, 18-2-23.)
Maria Eugénia Abrunhosa é licenciada em Românicas e professora aposentada do ensino secundário.