
Papa Francisco saúda migrantes, viagem Lampedusa (Julho de 2013). Foto: Vatican News sem creditos
1. Nesta dobrada do ano, fica a memória de Ihor Homenyuk, o horror em face da sua morte. O crime e a vergonha, grande tema de debate, notícia, opinião. Acesa, a sigla SEF tem sido dita e falada, grande atualidade. Explodiu a indignação quanto ao abuso policial nas fronteiras, mas pouco se sabe, em concreto, quanto à eficácia dos serviços administrativos, neste designado Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. A história de Ihor é a visível ponta do iceberg. Mas penso na invisível massa do mesmo iceberg, que recordo e revejo na fila imensa de pessoas que por horas sem fim estavam à porta do SEF, numa cidade longe de Lisboa. Não é preciso descrever a diversidade de origens, na inquieta resignação que percebi e não esqueço.
“Um calvário” ou “uma roleta russa”, pergunto e oiço de quem conhece os passos dos imigrantes que precisam de obter a sua residência em Portugal. “São pessoas de boa fé, maioria de língua lusófona. E os que não falam português? Africanos ou brasileiros falam a língua. Mas os ucranianos, os moldavos, os russos, os sírios, os chineses?”. Sem ajuda, sem apoio, sem tradutor.
Em Julho de 2013, a ida do Papa Francisco a Lampedusa, primeira viagem fora de Roma, foi expressão do seu ministério, símbolo de alerta e misericórdia, perante a vaga de refugiados que chegava à Europa. Um alerta aos cristãos para a terrível desgraça do mundo. Nascia então, para Frei Bento Domingues, “a Igreja de saída, a Igreja fora de portas.”[1] Nas palavras do Papa Francisco na encíclica Fratelli Tutti, em outubro de 2020, encontro estes imigrantes que procuram Portugal: “Muitos fogem da guerra, de perseguições, de catástrofes naturais. Outros, com pleno direito, andam à procura de oportunidades para si e para a sua família. Sonham com um futuro melhor e desejam criar condições para que se realize”[2].
2. A figura do forasteiro, do peregrino, do romeiro, do estrangeiro, pertence à nossa mais antiga e tradicional cultura. Mais grave ainda, por isso, é tentar conhecer o que acontece no funcionamento administrativo do SEF. O Governo tem uma política de acolhimento e integração. As leis estão certas, as mentalidades, erradas. O erro e a ineficácia decorrem da falta de informação, o que estabelece uma cadeia disfuncional, em que não impera a lei. Mais importante parece o que é dito por cada funcionário. Conforme o seu estado de espírito, a sua impaciência ou pressa. Ou uma atitude de sobranceria, forma perversa de violência, que pode levar a possível extrema desumanidade.
E que ultrapassa os direitos humanos daqueles que procuram regularizar a sua situação em Portugal. Nestes serviços, falta sempre um papel, uma declaração, há uma fórmula mal preenchida. A comunicação entre funcionário e utente passa por um labirinto de “legalês”, incompreensível. O SEF é um muro denso e duro, como se vê na Internet, no site que refere e integra uma população ativa, de pessoas que descontam para a Segurança Social e pagam impostos. Muitas vezes usadas em trabalhos escravos e redes de tráfico humano, em exploração da mão de obra escassa e barata, na construção civil e na agricultura.
Raramente o diálogo é claro, positivo ou amável. A propósito, mais uma vez podemos lembrar o pensamento do Papa Francisco, quando evoca São Paulo, para falar de um “estado de ânimo não áspero, rude, duro, benigno, suave, que sustenta e conforta. A pessoa que possui esta qualidade ajuda os outros, para que a sua existência seja mais suportável, sobretudo quando sobrecarregados com o peso dos seus problemas, urgências e angústias”[3] Ou ainda em Fratelli Tutti: “O exercício da amabilidade pressupõe estima e respeito, quando se torna cultura numa sociedade, transforma profundamente o estilo de vida, as relações sociais, o modo de debater e confrontar as ideias”.[4] Neste ponto, opõem-se alinhamentos entre os portugueses: para uns, os imigrantes causam desemprego, para outros, os imigrantes devem ter meios de proteção social.

“A política de acolhimento e integração nem sempre resulta”. Foto: Frederick Noronha / Wikimedia Commons
3. Sem um visto de residência, não é possível viver em Portugal. Mas são imensas as barreiras no percurso dos imigrantes que chegam ao nosso país. Para obterem o visto, têm de demonstrar meios de subsistência e condição de alojamento. Existe uma portaria, uma lei, uma regra que não define concretamente um visto de residência. O que é o visto de residência? – pergunta o requerente. – Ah, isso depende – responde o funcionário. “Nem o jurista entende a lei, quanto mais o cidadão”, diz quem sabe.
Para exemplo de complexidade e confusão, leia-se um pouco do que é dito sobre o visto de residência no portal do SEF: “O requerente de visto de residência para o exercício de uma atividade subordinada ou independente deve dispor de meios de subsistência determinados nos termos do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 2º assegurados por um período não inferior ao máximo admissível nos termos conjugados do disposto no nº 2 do artigo 58º da lei nº 23/2007 de 4 julho…” Não transcrevendo aqui, mas ainda mais seis documentos são referidos na “alínea a) ou b) do nº5 do artigo 59º e na alínea… etc”
Qual é a prova dos meios de subsistência? Há uma resposta padrão no site do SEF, com a informação. Mas a informação não informa, o imigrante não percebe o que lhe é exigido. E vai ao Serviço, com os documentos que acha suficientes. Mas tudo depende do funcionário. Começa pelo extrato bancário, nem sempre conseguido porque alguns bancos exigem autorização de residência. Continua com o recibo de desconto para a Segurança Social, por mais de seis meses. Mais ainda lhe é exigido o seguro de saúde. E tem de apresentar o comprovativo da declaração do IRS do ano anterior, a demonstrar ter recebido mais que o salário mínimo, conforme o número de pessoas da família.
Para conseguir o visto de residência, o imigrante precisa de um contrato de trabalho para apresentar ao SEF. E também tem de demonstrar “condições de alojamento.” Em vez de se dizer que deve apresentar uma “cópia do recibo de renda ou do contrato de arrendamento”, pratica-se uma linguagem “técnica” que tem de se “traduzir” para o cidadão comum.
“O problema é que ninguém sabe”, diz quem conhece as imprecisões, as complicações, as possíveis interpretações do atendimento. Neste círculo vicioso, impera a citada portaria. Que é de 2007, tem treze anos e continua em vigor.
Só por agendamento se consegue chegar ao SEF. Dois a três anos em média é o que demora a autorização de residência, o que condena a pessoa a uma precariedade. Muitos, assim, se sujeitam a trabalhar por um valor inferior o salário mínimo.
Outros tantos tentam uma promessa de trabalho, com a qual podem conseguir legalizar-se. O patrão não pode contratar um trabalhador sem o visto, mas nenhum quer prometer trabalho a quem tenha de esperar anos pelo seu documento.
“É uma pescadinha de rabo na boca”, dizem-me.
A política de acolhimento e integração nem sempre resulta. A burocracia instala-se, a perturbar as boas práticas. Em março, tempo de plena pandemia, por despacho do Governo foi regularizada a situação de imigrantes com processos pendentes. Através de uma declaração do SEF, podiam aceder ao Centro de Saúde. Mas essa declaração não funcionava. Era recusada pelo funcionário do Centro de Saúde, onde só é aceite aquele que tem documento de residência.
4. Se há preconceito ou desrespeito pela dignidade das pessoas, são comuns as situações de assédio às mulheres brasileiras. Não denunciadas, porque há tolerado encobrimento e impunidade, em matéria de atitude e comportamento. “O SEF faz rusgas nos dancings e nas discotecas, em vez de fazer rusgas na fábrica ou no campo, quando há trabalho escravo em Portugal.”
No dia a dia do SEF, as pessoas comuns sentem-se humilhadas. O sistema não funciona: “Isso é a vida real.”
E há desigualdade? Sim, quando se fala em Investimento. Por 500 mil euros mil compra-se uma casa, paga-se mais uma taxa de cinco mil euros, mais cinco mil ao advogado. E num mês tem-se um “visto golden” com autorização de residência.
“Pode parecer estranho, mas a questão política tornou-se inseparável da fidelidade à memória cristã mais antiga”, diz frei Bento Domingues em abertura à sua meditação sobre o “grito brutal” do Papa Francisco, na encíclica Fratelli Tutti. Continuando, frei Bento exprime intensa esperança: “Que este texto provoque novos textos, novas intervenções, novas análises, novos estudos, novas investigações e, sobretudo, novas práticas sociais, culturais, económicas e políticas.”[5]
Esperando, assim como muitos outros cristãos, a palavra da Igreja portuguesa sobre estes temas, acredito que a forte personalidade de D. José Ornelas possa ser inspiração para a ação e fala dos nossos bispos.
[1] Frei Bento Domingues, Público, 19 julho 2020
[2] Papa Francisco, Fratelli Tutti, nº 37.
[3] Ibidem, 223.
[4]Ibidem, 224.
[5] Frei Bento Domingues, Público, 11 outubro de 2020.
Leonor Xavier é escritora e jornalista e integra o movimento Nós Somos Igreja – Portugal; Laranjeiras em Atenas é o seu último livro.