A nós que somos os herdeiros de uma longa tradição de escuta regular de uma Palavra, não nos é fácil sentir uma das novidades radicais que o Cristianismo consigo transportou: a da pregação semanal, aberta a todos os que manifestassem interesse, de um ensinamento inspirado nas Escrituras. Trata-se de uma verdadeira revolução no modo como uma Palavra circulou entre as pessoas, cultas e incultas, alfabetas ou não, formando consciências e gerando sujeitos ativos – pois é pela escuta que somos capacitados a falar. Foi por duas vias que o Cristianismo se moldou e moldou uma sociedade: o hábito da caridade que as comunidades testemunharam entre si e junto dos pobres, e a via da pregação e do ensino da fé.
É neste percurso que, na tradição latina, a figura de Santo Agostinho, na transição entre os séculos IV e V, se constitui como um dos seus grandes testemunhos. Filósofo, teólogo e um dos grandes pensadores do Ocidente, Agostinho foi, acima de tudo, um pastor: primeiro como presbítero, depois, durante mais tempo, como bispo de Hipona (na atual Argélia). Neste ministério, a pregação ocupou um lugar central. Chegaram até nós cerca de 600 sermões de Agostinho, dos quais 50 são especificamente dedicados a passagens do Antigo Testamento, e que constituem esta obra que agora chega às nossas mãos, bem acompanhados de um alargado estudo introdutório da autoria de Isidro Lamelas.
Seja a partir de um versículo cantado de um Salmo, de uma passagem profética, de códigos éticos ou de outras passagens do Antigo Testamento escutadas na liturgia, Agostinho desenvolve um discurso com aqueles que o escutam, percebendo-se pelo texto o modo ativo e dialógico como este discurso tem lugar: «Na verdade, viestes poucos, mas se escutastes bem, já sois um grande número». Em primeiro lugar está a própria defesa dos livros do Antigo Testamento enquanto lugar de revelação de Deus e de preparação do acontecimento de Cristo. Mas também as questões difíceis de vivência ética, para cristãos que procuram entrelaçar as exigências evangélicas com as circunstâncias da vida de cada um; por exemplo, a questão das riquezas e dos seus dois perigos, a soberba para o rico, a inveja para o pobre: «Ouço o que a língua diz, mas eu interrogo a consciência. Que ele diga se não quer enriquecer. Se quer, então já caiu em tentação». Mas também o encontro consigo mesmo, à luz da Palavra escutada: «Examina o teu coração e põe os olhos no teu Senhor. Tens aí o teu inimigo, que é mau, e tens aí o teu Senhor, que é bom.» E a oração pelos inimigos, traço distintivo da caridade cristã: «O facto de, quando começas a orar, a debilidade carnal começar a brigar contigo, isso são as impurezas, das quais Deus te quer purificar na fornalha» – na fornalha do quotidiano, nos desafios do presente, sobre os quais estes Sermões se debruçam.
Não busquemos nas respostas rápidas e fáceis adormecer as nossas perguntas. Uma boa pregação é aquela que alimenta o lume destas perguntas e destes desejos, ao invés de o apagar pela sonolência dos lugares-comuns e dos caminhos já mil vezes percorridos. De Santo Agostinho advém-nos o testemunho de uma busca ardente e incessante pela verdade do Senhor da história que entre nós habita. Que este volume encontre com premência as mãos e os olhos da nossa leitura: o alimento que aí encontraremos, tão raro no nosso contexto português, será sólido e duradouro, como um banquete da Palavra.
«Quem quer que sejas tu, que amas a vida longa, ama antes a vida boa. Com efeito, se quiseres viver mal, uma vida longa não será um verdadeiro bem, mas será um longo mal (…) Certamente, desejas que a vida seja longa, embora seja má. Faz antes com que ela seja boa e não te preocupes com o facto de ela ser breve. Com efeito, se ela corre bem, quando tu és solícito, estando tu tranquilo, ela depressa chegará ao fim. A seguir vem a vida eterna, a vida feliz sem medo, a vida longa sem fim».
Sermões (Antigo Testamento)
Autor: Santo Agostinho
Edição: Secretariado Nacional de Liturgia
712 páginas