[Olhar de teóloga]

Alma de pobres (II)

| 19 Out 2022

Cena do Filme "As Sandálias do Pescador" entre o padre David Telemond (Oskar Werner) e  Kiril Lakota (Anthony Quinn)

Cena do Filme As Sandálias do Pescador entre o padre David Telemond (Oskar Werner) e Kiril Lakota (Anthony Quinn).

 

Continuo com a reflexão a partir de As Sandálias do Pescador, de Morris West. Fico agora com a figura de David Telemond, o sacerdote que Kiril escolhe como secretário, apesar da sua obra teológica estar a ser submetida a revisão. Por certo, Kiril não favorecerá David Telemond quando chegar a rejeição da sua obra por parte da então Congregação para a Doutrina da Fé.

Mais do que um questionamento da teologia que estudou, David Telemond mostra um espírito que não se conforma com aquilo que aprendeu e isso é muito diferente. Não é um rebelde que questiona por questionar ou que proponha por propor; pelo contrário, é um homem reflexivo que comparte o seu pensamento a partir das experiências vividas e da evolução do seu próprio estudo. Porque David Telemond é um sacerdote que continua a estudar.

 

A criação continua a acontecer

Enquanto andava imersa nestas reflexões, começaram a chegar as imagens do telescópio James Webb, com uma nitidez assombrosa, e tornando-nos participantes de algo que está a acontecer a uma distância do nosso planeta que somos incapazes de abarcar. Para além da maravilha das próprias imagens, elas estão a contar-nos não apenas como foi a criação, mas como a criação está sendo porque continua a acontecer.

Cada vez que via as numerosas imagens que se tornavam públicas e lia artigos de especialistas, mais pensava em Teilhard de Chardin e em David Telemond que tinha muito recente na minha memória. Dizem que a personagem do David foi baseada na pessoa do jesuíta. Em todo o caso, a semelhança é enorme.

 

Normas e dogmas

Ambos olharam muito mais além do que os censores da sua obra puderam alguma vez olhar. Certamente que esses censores agiram em consciência e de boa-fé; porém, ajustaram-se às normas e aos dogmas que surgiram em contextos totalmente diferentes dos que existiam naquele momento.

Quanto tem perdido a Igreja, quer dizer, todos nós, ao privar-nos das reflexões teológicas de pessoas que não tiveram medo de olhar muito mais além daquilo que podemos ver a olho nu? Sim, é verdade que existe um depósito de verdades reveladas, mas será que já não cabem mais? Está tudo dito? Entendo que a pergunta surpreenda.

 

Abertos a realidades

Neste caso, ter alma de pobres supõe estar aberto a realidades que há poucos anos nem imaginávamos. Aqui sim que é necessário recuperar essa humildade bíblica, por pura coerência, que deve levar a uma escuta atenta do que Deus nos quer dizer com o que estamos a descobrir no universo mais profundo. Deus deu-nos inteligência suficiente para chegar a essas descobertas e aceitar os desafios que elas nos apresentam.

Nós tomamos a humildade para assumir que, num planeta tão diminuto como a Terra, que nem sequer é a cabeça de um alfinete no cosmos, existam todos os elementos para que germine algo tão frágil como é a vida. Sim, somos menos que um pontinho no vasto universo, mas, sem dúvida nenhuma, um pontinho privilegiado e sublime.

 

Figuras necessárias

Voltando às imagens do telescópio James Webb, creio que figuras como Teilhard de Chardin e personagens como David Telemond são muito necessárias na Igreja para nos ajudarem a pensar. Certamente que o jesuíta já teria dito alguma coisa a esse respeito, como o fez Guy Consolmagno, diretor do Observatório Astronómico do Vaticano, que deixou claro que hoje em dia não tem sentido nenhum o confronto entre ciência e fé.

Demasiado habituados a que nos contem a Bíblia e não a lê-la, não costumamos prestar atenção ao relato da criação que aparece em Génesis 1, 1-31, que nos narra a evolução desejada por Deus na criação de forma lógica e que podemos confrontar com artigos científicos – e agora com muitíssima mais informação – que nos explicam a origem do cosmos, do universo, do homem.

 

Sem medo

Não seria interessante se retomássemos a Teologia da Criação, onde teologia e ciência ou ciência e teologia andassem de mãos dadas e se apresentassem como artífices conjuntos dessa reflexão? Nem por sombras está tudo dito e não há que ter medo de continuar a aprofundar a imanência de Deus. Se continuamos a crescer na compreensão científica, também deveríamos crescer na compreensão de Deus.

Quando alguém permanece naquilo que aprendeu e a evolução da vida insiste em nos apresentar novos desafios, ou se evolui também nos estudos ou acaba por apegar-se a uma religiosidade cada vez mais vazia de conteúdo e mais cheia de superstição. Começamos a nossa confissão de fé afirmando que cremos em Deus, Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da terra. Deus e a criação vão de mãos dadas.

 

Sinfonia de vozes

Sim, confesso que sinto falta dos comentários que, partindo daquilo que estamos a ver do universo e da criação, fariam Teilhard de Chardin e David Telemond, e também sinto falta das reflexões – tenho a certeza que já teriam dito alguma coisa e estariam a trabalhar nisso – de Juan Luis Ruíz de la Peña e de Sofía Chipana, de Riane Eisler e de Françoise Gange, porque a criação fala-nos com uma sinfonia de vozes.

Cada descoberta leva-nos a fazer cada vez mais perguntas que nos convidam a continuar a refletir e a investigar. Continuamos à procura de muitas respostas no céu, só que agora temos que procurá-las olhando de outra maneira e sem medo porque, em muitas ocasiões, é preciso raspar muito a religião para chegar à fé.

 

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Este texto é publicado por cedência da autora e da revista espanhola Vida Nueva ao 7MARGENS. Tradução de Júlio Martin. O primeiro texto com este título pode ser lido nesta ligação.

 

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