(Breve evocação de José Augusto Mourão op, no décimo aniversário da sua morte – 5.maio.2011)

José Augusto Mourão há vinte anos, em Janeiro de 2001. Foto © Pedro Cunha, cedida pelo autor
«peço-te
a instabilidade do vazio
o lugar do observador
ou do contista de ruídos
a soleira da porta
a passagem de hóspedes
e alguma jubilação
pelo que renova o mundo»
(«Pedido», O Nome e a Forma p. 132)
1.
Cada pessoa que fizer uma evocação de José Augusto Mourão fá-lo-á de um modo diferente. O percurso biográfico de Mourão presta-se a essa pluralidade quase heterodoxa, diferente das narrativas oficiais com as quais se canoniza uma vida e uma determinada biografia da mesma. Em primeiro lugar, claro, está a evocação feita pelos irmãos da sua ordem dominicana; a evocação feita pelas monjas dominicanas e pelas irmãs dominicanas de Santa Catarina de Sena; os colegas e alunos que trabalharam com Mourão no espaço da Academia e das Ciências da Comunicação; as pessoas que percorreram os encontros do ISTA (Instituto São Tomás de Aquino); as comunidades que acolheram as suas composições musicais; os leitores e leitoras que com regularidade visitam a sua poesia; etc.
Tal pluralidade mostrará talvez o que ainda há a descobrir e, também, a trabalhar. A biografia de Mourão foi sucintamente bem exposta no artigo que António Marujo lhe dedicou no jornal Público aquando da sua morte (O frade que trouxe a semiótica para Portugal). A partir dessa data, 5 de maio de 2011, o corpo de Mourão tornou-se texto, tempo de possibilidades novas que farão, progressivamente, deixar a Mourão no que ele foi e fez, para descobrir a Mourão no que propôs e permitiu (permitir, verbo chave para um dos seus mestres, o jesuíta Michel de Certeau). Alguns passos foram dados nestes 10 anos transcorridos: a publicação de uma Obra Seleta em 2017 (edição INCM); as conferências anuais dedicadas a Mourão, por altura de maio, que as monjas do mosteiro do Lumiar organizaram até ao ano de 2016; alguns artigos, publicados em revistas científicas nacionais, de autores como Alfredo Teixeira, Gonçalo Cordeiro, Luís Machado ou Moisés de Lemos Martins, entre outros; e sobretudo, os poemas que, a ritmo constante, continuam a ser partilhados em páginas pessoais ou institucionais no ciberespaço. Já da parte da teologia e da sua leitura da obra de Mourão, estará quase tudo por fazer. Ainda bem.

José Augusto Mourão nos primeiros anos como dominicano. Foto retirada de um blog que Mourão manteve no início da década de 2000 (http://dominus.no.sapo.pt
— o blog já não se encontra ativo, tendo sido consultado através da plataforma arquivo.pt).
2.
É referido por quem contactou com Mourão que o próprio não se considerava poeta. Penso que não se trataria de modéstia ou de uma prática na qual um verdadeiro poeta raramente se considera como tal. Num artigo publicado em 1993 na revista Humanística e Teologia da Faculdade de Teologia do Porto, Mourão – já com dois livros de poesia publicados – referia:
«Onde estão os leigos que entre nós se atrevem a falar de Deus? (…) Que pudor é este que entrega aos rimadores medíocres os versos que o povo canta nas igrejas, ou lemos em brochuras. Maria de Lourdes Belchior é, entre nós, uma excepção de honra (…). A distância, em relação à teologia, não podia ser mais marcada. E não recusa Sophia de Mello que digam de alguns dos seus poemas que são “místicos”?
Há aqui uma questão de fundo: porque não pode jungir-se a poesia e a oração, a poesia e a teologia?».
Lamento justificado. Em França, a Igreja soube convidar os poetas para colaborar com os teólogos, músicos e liturgistas no trabalho de tradução e recriação dos textos da liturgia católica, no âmbito da reforma pós-conciliar. Patrice Tour du Pin será o nome mais significativo desse grupo de poetas, com uma obra – publicada em França pelas edições Gallimard e infelizmente nunca traduzida em Portugal, à exceção de dois poemas incluídos por Mourão na sua própria obra poética – que exprime uma aventura espiritual notável. Tour du Pin escreveu e comentou o seu fecundo encontro com os “especialistas” da liturgia, que ele, enquanto poeta, não era. Já Mourão não poderia dizer o mesmo, pois foi teólogo, músico e liturgista. Mas, ao contrário do que sucedeu em França, em Portugal não terá havido poetas a trabalhar (a serem convidados a) a sua poesia na e para a liturgia. Mourão assumiu esse trabalho. Os leitores, ontem e hoje, agradecem. Deu uma falta, ou ausência, surgiu uma obra poética.

Obra Seleta
3.
A questão maior que terá percorrido a vida de Mourão é a questão maior da teologia: é possível nomear, dizer Deus? Não se trata de “raptar” o corpo textual de Mourão para as modestas fronteiras da teologia, ele que viveu para lá delas. Trata-se, eventualmente, de refletir sobre essas fronteiras. Em 1991, na revista Ler (nº 17), Mourão publicou um artigo que pode ser considerado programático, ainda que, depois, o tenha retomado sempre de outros modos que não o ensaio. O artigo tem por título Dizer o Nome de Deus. Refere:
«Experimentar a partir deste corpo e a partir das nossas palavras o corpo outro e o nome escondido, só uma linguagem de pressentimento, de adivinhação táctil pode diante da Palavra que solicita, isto é, com a fé é-nos dada uma palavra que provoca outra palavra. Mantenhamo-nos na proximidade do interrogar».
Outro texto a realçar é uma Abertura que Mourão preparou para a edição de 1991 de Dizer Deus ao (des)abrigo do Nome (ed. Difusora Bíblica) e que não foi incluída na edição completa da sua Poesia:
«eis algumas alusões a um corpo ausente,
escritas na alegria-dolorosa da sua
presentificação.
a ortolalia é triste,
a figuração ortopédica de Deus é triste.
e é difícil escapar a uma certa estereotipia, pelo
menos formal.
se alguma compulsividade estes textos
contrariam, será a da repetição maníaca de
lugares comuns que tão mal dizem Deus.
leiam-se, pois, como ensaios ou modos de dizer
o Nome no espaço-tempo de quem responde à
redução do que, nesse Nome, é um enigma e
uma bênção».
Dizer Deus, o Nome, o corpo ausente, enigma e bênção que seduz: um programa poético que busca contrariar a “repetição maníaca de lugares comuns”, a ortolalia (termo que, a partir de duas palavras gregas, orthos e lalein, significa “falar corretamente”), a figuração ortopédica (que pensará Mourão com esta expressão?), a estereotipia. A «impostura da língua», na expressão de Llansol. Não está em causa o dizer ou nomear a Deus, mas o como e mesmo o quanto. A enunciação poética não deixa de constituir um ensaio, uma tentativa, um trabalho que contraria alguma compulsividade.
Trata-se – dirá Mourão noutra passagem do artigo na revista Ler antes citado – de praticar «a linguagem sobre Deus como uma treva luminosa». Expressão densa e difícil, que ecoa os místicos medievais caros a Mourão – Eckhart, Suso, Tauler, Ruusbroeck – alguns deles pertencentes à tradição dominicana. «Pratique-se a linguagem sobre Deus» constitui, de facto, o trabalho da teologia, entre o automatismo rotineiro da repetição das fórmulas e a discreta tentação do silêncio mudo… Mourão enfrentou este trabalho e fê-lo, não no comentário encerrado dos compêndios e dogmas, mas no próprio campo da linguagem humana com os seus textos, desde os místicos modernos aos romancistas, passando pelos novos fóruns (novos, tendo em conta a década de 2000), o hipertexto, o cinema de matriz neognóstica, a cibercultura. E paralelamente a liturgia, habitação onde, afinal, a poesia de Mourão se pronunciou.
4.
O texto é a mediação que o leitor dispõe para se encontrar com um autor. «Bem-aventurado sejas tu, ó texto». O autor perde-se no meio do texto, não está por detrás dele: a sua alteridade resiste-nos, o seu sentido pede um difícil e atento trabalho de leitura onde o hábito é o principal adversário. O tempo, agora, não será já de permanecer apenas na evocação de datas, passos e realizações biográficas, mas de fazer a passagem para a receção de um texto que vem. O corpo textual de Mourão – poemas, homilias, artigos – permanece encerrado num túmulo [vazio] aguardando a sua convocação por parte do leitor, para que o trabalhe e o acolha no seu próprio habitar do mundo. Não faltam as vozes que poderão testemunhar como os poemas de Mourão já pertence a esse modo de habitar, e como as suas homilias continuam a desafiar a imaginação da fé.
Desse Texto emerge a busca de um Mistério. «Treva luminosa», «vazio verde», «páscoa de páscoas», «instante fugaz», «poeta das origens»… as evocações e enunciações de Deus são imensas e poderiam formar uma ladainha. A sua multiplicidade manifesta familiaridade, confiança, proximidade mas também a luta, sofrimento, travessia… de alguém que não recusou entrar na treva ou noite do Texto, do Nome, da Presença para aí lutar com o Anjo do sentido.