Como Desabitado, o Coração
(…) Podem acontecer, e então a música
decerto estará lá.
as palavras surgirão então, o sol, o girassol, a luz
que gira em torno do eixo feito de outra luz.
Poderia ser Deus, ou paz.
Sentir. E de repente o mundo acontecer,
o milagre do mundo a acontecer –

A poeta, escritora, tradutora, professora Ana Luísa Amaral, numa fotografia da sua página de Facebook, da autoria de Onomatopeia.
Morreu-me uma irmã. Ana Luísa Amaral “desabitou” este mundo. Partiu para o Infinito deixando-nos o rasto de luz da sua poesia. Que esteja na plenitude que tanto desejou ao longo dos anos e que a desinquietou levando-a a fazer poesia. Como quem respira.
Ouvi-a não raras vezes a recitar os seus próprios poemas que sabia de cor. Voz forte e límpida, transparente, doce. Uma força da natureza. Mulher solar: um girassol. Mulher das palavras: Ana Luísa amava a língua portuguesa.
Mulher também do quotidiano e do transcendente. Sempre me deslumbrou na sua simplicidade. Sinto o meu coração ”desabitado”… Considerava-me sua amiga. Considerava-a um pouco minha irmã. Ela sabia o quanto gostava da sua poesia. Quantas vezes nos encontrámos nela…
Ana Luísa, uma Mulher de bondade e profundidade. Genuína e simples. Lídia Jorge afirma que “Ana Luísa tinha “uma candura imensa na sua relação com as pessoas”. Pude confirmá-lo. Mulher de cultura, feminista, prolixa autora de poesia, de cativantes livros infantis (a célebre “História da Aranha Leopoldina”), de teatro (“Próspero morreu”), de traduções (nomeadamente de Emily Dickinson), grande académica, cidadã interveniente e ativista pelos direitos humanos, Ana Luísa foi também uma grande ensaísta. Vale a pena ouvir “Da publicação da Alma Humana: Histórias”, a sua oração de Sapiência nas Comemorações dos 111 anos da Universidade do Porto no passado 23 de Março de 2022.
Não mais um novo poema, um novo livro. Vai ser o vazio da Ana Luísa apesar dos seus poemas. Ela partiu para Deus. Partiu para a paz: “a luz que gira que gira em torno do eixo feita de outra luz”.
Continuará a acontecer “o milagre do mundo”, conforme as suas palavras, mas com a sua presença numa dimensão outra. Na tua ausência, Ana Luísa, querida amiga. Saboreio o teu poema “Primeira Canção” e reconheço o convite à minha própria transformação:
Olha o céu
tão azul
que agora ficou cinzento:
vai voltar a ser azul
e a ter sol
Olha a luz
a partir-se,
bocadinhos de arco-íris:
vai ficar da cor de arara
ou de pavão,
a luz
Tudo muda,
tudo cresce
e se transforma
Também tu –
Ana Luísa Amaral deixa-nos inesperadamente (apesar da doença prolongada com que lutava) na noite da Festa da Transfiguração (Lc 9, 28b-26). Entrou na plenitude de Deus. Transfigurou-se em “átomo livre”, como afirma num dos seus poemas, “despeg[ou-se] do seu corpo”. A filha sempre presente nos seus poemas, na sua vida. Fica-nos o poema:
Testamento
Vou partir de avião
E o medo das alturas misturado comigo
Faz-me tomar calmantes
E ter sonhos confusos
Se eu morrer
Quero que a minha filha não se esqueça de mim
Que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
E que lhe ofereçam fantasia
Mais que um horário certo
Ou uma cama bem feita
Dêem-lhe amor e ver
Dentro das coisas
Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
Em vez de lhe ensinarem contas de somar
E a descascar batatas
Preparem minha filha para a vida
Se eu morrer de avião
E ficar despegada do meu corpo
E for átomo livre lá no céu
Que se lembre de mim
A minha filha
E mais tarde que diga à sua filha
Que eu voei lá no céu
E fui contentamento deslumbrado
Ao ver na sua casa as contas de somar erradas
E as batatas no saco esquecidas
E íntegras.
Acredito que hoje Ana Luísa é “contentamento deslumbrado”. Contempla Deus face a face. Não nos deixa. Estará sempre presente.
Mas dói a ausência.
Teresa Vasconcelos é professora do ensino superior aposentada e membro do Movimento do Graal (t.m.vasconcelos49@gmail.com)