Reportagem vencedora do Prémio Gazeta de Imprensa

“Ando aflita, Sra de Fátima, a guerra está em Portugal”

| 2 Jul 2021

Cartas de mães aflitas a pedir que os filhos regressem salvos da guerra, namoradas ou noivas esperançadas, os próprios a pedir para voltar bem e a prometer gestos de gratidão. O Correio de Nossa Senhora, no Arquivo do Santuário de Fátima, recolhe testemunhos da angústia que atravessou o país no tempo da guerra colonial. Segunda parte da reportagem premiada com o Prémio Gazeta de Imprensa 2019-2020 e cuja primeira parte foi publicada em outro texto no 7MARGENS.

Reprodução da reportagem original publicada no Expresso.

Será, talvez, uma das primeiras cartas com notícias da guerra colonial, vista do lado de cá: “Minha Mãe, sabeis que ando aflita, tenho medo do que se passa à minha volta. A guerra está em Portugal. O mundo está perdido. (…) ajudai os soldados de Angola. Dá-lhe coragem em vós.”

A mulher que escreve para a Senhora de Fátima, na primeira metade de 1961, não assina nem diz de onde escreve, mas refere-se ao conflito que estalara em Angola: a 4 de Fevereiro – faz agora 59 anos – cerca de duas centenas de pessoas atacaram a Cadeia de São Paulo e a Casa de Reclusão, em Luanda, dando início ao combate armado contra a presença portuguesa na então colónia de Angola. Mês e meio depois, a 15 de Março, centenas de colonos brancos e vários negros foram massacrados no norte do território e o horror tomou conta do país e dos colonos. 

Cinco anos e meio depois, em Dezembro de 1966, a guerra continuava e outra mulher escreve, do Alentejo: “Uma mãe aflita pede lhe a vossa proteção para um filho que tem [em] Angola numa das regiões mais atacadas pelo terrorismo peço-vos querida mãe do Céu que alcance do vosso amado Filho a graça do meu filho não ser atingido pelos terroristas, e que termina a sua missão de soberania sem algum azar. Mãe Santíssima tende compaixão de mim e do meu bom filho. (…) Que Deus me conceda a graça de poder abraçar o meu bom filho aos vossos pés…”

Já a mãe de Valentim Silva Dias deixou em Fátima uma carta já depois de o filho ter regressado são e salvo, do serviço militar que cumpriu na Guiné, entre 1969 e 1971. “Eu sua mãe, venho a vossos pés, Nossa Sra. de Fátima, mãe dos Portugueses e nossa, agradecer-vos a graça que vos pedi de nosso filho ir para a Guiné e vir são e salvo, agora estamos aqui todos, mãe e pai o filho e sua esposa e trez meninas. Tu, S.ra que peças ao teu Jesus as suas graças e as vossas bênçãos do céu. sua mãe Maria da Conceição Silva F.[onte]”, dizia a carta, com os erros ortográficos ou de pontuação aqui reproduzidos (critério que se manterá neste texto, não corrigindo erros ortográficos ou gramaticais). 

Da primeira carta citada até à de Maria da Conceição, que esteve numa exposição organizada pelo santuário em 2015, medeia um tempo largo. Não só o dos dez anos que separam as duas mensagens, mas também aquele que vai da ideia de que a guerra se resolveria em poucas semanas ou meses até à consciência de que ela não tinha fim e sangrava cada vez mais o país e as suas gerações mais novas – mais de oito mil jovens portugueses morreram nas operações, além de outros 15 mil terem ficado com problemas físicos ou psicológicos; e morreram ainda cerca de 50 mil angolanos, seis mil guineenses e 10 mil moçambicanos.

A mãe de Valentim foi uma das muitas mães ou avós, namoradas ou noivas, que escreveram para Fátima a dar notícias de quem ficara do lado de cá da guerra. São “sinais de vida”, chama-lhes a documentarista Joana Pontes, autora do livro que leva precisamente esse título Sinais e Vida – Cartas de Guerra 1961-1974, publicado no final de Novembro. E eles atestavam que, dos dois lados – de quem partia para a guerra ou de quem ficava – as coisas “estavam bem”. Esses “sinais de vida eram fundamentais para que, em ambos os lados, as pessoas continuassem a viver mais ou menos em paz”, acrescenta Joana Pontes. 

“Compaixão para quem luta em Angola…”

“S.P.M.” (Serviço Postal Militar), monumento às mulheres, de Nuno Sousa Vieira e Rita Gaspar Vieira (Leiria, 2004). “A peça “convoca a noção de distância  física/material e temporal, que durante a Guerra Colonial separou famílias, propondo um olhar de regeneração pela comunicação e continuidade.” Foto © António Marujo

As cartas citadas estão entre as quase oito milhões de documentos do “Correio de Nossa Senhora” do santuário, uma parte, até agora praticamente inédita, do arquivo do santuário (ver Revista E de 4/01/2020). Sobretudo desde as décadas de 1940/50, este espólio recolhe as mensagens que as pessoas enviam para ou deixam no santuário, a falar dos seus problemas ou a agradecer determinados acontecimentos das duas vidas (ver revista E, 4 de Janeiro de 2020). 

Na sua maior parte, as cartas que se referem à guerra dão conta da aflição ou da dúvida, do pedido genérico pela paz ou da súplica pelos mais próximos, da convicção ideológica alinhada pelo discurso oficial ou, mesmo se residualmente, da contestação ao regime e à guerra. 

Maria da Luz Rosette Nabuco tinha 13 anos e frequentava um colégio católico em Aveiro. Estava entre o que pressentia serem as posições desalinhadas do pai em relação ao regime e o que ouvia na escola ou na rua… A 11 de Maio de 1961, pouco mais de dois meses sobre o início dos acontecimentos, escreveu também para Fátima: “É do fundo do meu coração que Vos venho pedir compaixão por aqueles que sofrem em Angola, que têm sido tão barbaramente tratados só por Vosso amor.”

Professora do ensino básico, hoje aposentada, Marilú, como assinava, recorda agora, à revista E, o tempo em que escreveu a carta: “Foi um contexto de guerra. Lembro-me de ver as imagens dos massacres. Havia duas famílias de Aveiro] que ficaram desmembradas com a morte dos maridos, no princípio da guerra em Angola. Eram pessoas que nós conhecíamos [e isso] foi um trauma.”

Havia, na família de Maria da Luz, outros elementos que eram motivo de preocupação: “O meu pai era contra o regime e manifestava-se contra a guerra. Muitas vezes ia passar umas horas ao sítio da PIDE [polícia política do regime] em Aveiro.” E um tio também tinha sido mobilizado para Angola e a família temia por ele. 

“Nunca se transmitia para cá” tudo o que acontecia ou “o que os nossos militares faziam aos ‘turras’ que apanhavam”. Certo é que ninguém queria que os seus fossem para o então Ultramar, “para não morrerem”. 

“A mulher actuava nos bastidores” 

Correspondência de um militar que esteve em Angola durante a Guerra Colonial: muitas das cartas depositadas em Fátima fazem pedidos pela paz. Foto © António Marujo


São centenas as cartas ou mensagens que se referem à guerra colonial (até 1974, quando a revolução de 25 de Abril põe termo ao conflito, há cerca de 50 mil mensagens em português arquivadas em Fátima, além de mais alguns milhares em outras línguas). Uma boa parte delas limita-se a pedidos genéricos pela paz – em Portugal e nos então territórios ultramarinos, mas também com uma perspectiva mais larga: “Dai a paz ao mundo, fazei com que a guerra acabe.” Por vezes insistindo: “outra vez paz ao mundo e aos homens de boa vontade”. 

Com frequência, alude-se também aos militares que lutavam em África: “Dai a Paz a todos os soldados que combatem em Angola, Moçambique, Guiné, S. Tomé e Príncipe e em todas as províncias do Ultramar que estam a defender va Pátria Portuguesa e muitos dando o seu sangue e as suas vidas por vós e pela Pátria”, escreve um A., a 13 de Maio de 1965.” Ou, num tom mais premente, “salvai Portugal e os soldados que dão a vida pela pátria”. 

Outras mensagens aliam esses pedidos a motivações ou referências políticas: contra o terrorismo, assumindo o partido de Salazar ou do regime português: “N. Sra de fátima dainos a paz N. Sra de fátima velai pelos nossos soldados (…) abençuái a nossa pátria o nosso Salazar e as berdadeiras autoridades”. Também condenando a Rússia ou União Soviética e o comunismo (“com que a guerra não venha para Portugal, que a Rússia se converta e reine a paz no mundo”), afirmando a defesa do Ocidente contra os perigos do terrorismo ou do comunismo… 

Há ainda mensagens referindo a guerra como um castigo pelos maus comportamentos da humanidade: uma jovem estudante escreve três páginas a pedir por várias pessoas, depois por ela própria (“sou um bocado vaidosa peço-vos para que eu passe a ser uma moça mais simples”), para concluir: “Peço-vos também a Paz para o Mundo que os homens sejam iluminados e para que deixem de lutar convencendo-se que é um castigo de Deus e para que se arrependam.”

A., um homem do sul do país, também alia a guerra à noção de pecado: “Ó Mãe santa fazei com que a guerra acabe e que os pecadores se convertam para que Nosso Senhor deixe de sofrer.”

No que à guerra colonial se refere, a esmagadora maioria de quem escreve são mães, avós ou outras familiares aflitas, namoradas ou noivas esperançadas: J., açoriana, escreve que o noivo está “numa parcela de Portugal” e pede “que ele volte sã e salvo afim de ir cumprir a sua promessa ao vosso santuário ajoelhar-se a vossos pés agradecervos por ter sido amparado e guiado por vós Senhora”. 

“Sabemos que a mulher actuava nos bastidores”, diz Ana Bela Vinagre, arquivista e autora de As Mulheres nas Malhas da Guerra Colonial. “A mulher foi sempre um grande apoio dos combatentes. Eram as namoradas, algumas esposas, as mães”, com “um papel importante”. Do lado de lá, “receber uma notícia, uma palavra, uma carta, um aerograma” era um dos objectivos dos dias que pesavam, com os militares a pensar com frequência no correio que viria e na esperança de que houvesse carta para cara um. “Um apoio, um bálsamo, psicologicamente aquilo dava-lhes força”. 

O tema da guerra não está presente apenas nas referências ao conflito colonial que Salazar e o seu regime do Estado Novo levaram o país a manter nos três territórios africanos. Há muitas cartas do Brasil a falar também da guerra, quase sempre aliando essa referência ao anticomunismo (o país, tal como o conjunto da América Latina, vivia tempos de grande convulsão política e social) ou, mesmo, a pedidos mais prosaicos: “paz ao mundo ao Brasil e a Portugal e Angola melhorai o cambio no Brazil.” 

Encontram-se, ainda, mensagens originárias de Espanha, Estados Unidos, Irlanda ou Vietname, com referências mais vagas ou mais explícitas a conflitos militares, quase sempre cruzadas com referências ideológicas. 

Também do interior das antigas colónias portuguesas chegam os mesmos desejos: “Nossa Senhora de Fátima salvai-nos do perigo do comunismo que quer dominar na nossa Angola!… Salvai a nossa Angola, Ó Rainha de Portugal!”, pede uma carta, escrita a 5 de Junho de 1961, por alunas numa cidade do sudoeste de Angola. E de uma outra cidade do ocidente angolano, chega um cartão em formato A4, dobrado e assinado por 15 alunas do liceu, com um texto em verso: “Já que sempre combatemos/ os inimigos da Cruz/ vem livrar-nos desta guerra/ Bendita mãe de Jesus.”

“Que os Índios não façam guerra…”

Fotografias de militares portugueses em Angola, durante a Guerra Colonial: em Fátima, “foi sendo construído o imperativo da paz”. Foto © António Marujo

Coincidindo com os primeiros meses de guerra em Angola, Portugal sofreria outro susto, aí sim mais rápido, com o que o regime considerou a “invasão” dos territórios portugueses na Índia, em Dezembro de 1961. Em dois dias (18-19), a União Indiana ocupou o que restava da presença colonial portuguesa na península. Esse episódio está também reflectido em algumas cartas, que indiciam ter sido escritas quando já havia ameaças de que uma tal acção poderia acontecer. 

“Pelo mano, para que não vá para a Índia, como algumas pessoas dizem”, pedia uma irmã preocupada. E uma outra filha, numa mensagem sem data nem assinatura, pedia pelo pai: “Fazei com que o meu Pai venha depressa da Índia, e que os Índios não façam guerra para que Portugal esteja sempre em paz.”

Mais para trás, em 1956, um miliciano que servira no território da Índia portuguesa, como era designada, não fala de questões militares, que ainda não estariam no auge, mas manifesta-se preocupado com outras questões mais prosaicas: os bailes públicos tinham deixado de ser há muito tempo “o contacto das almas com o Criador” e por isso se “dançava nas Igrejas, nas procissões e nas cerimónias religiosas”. A carta era dirigida a uma senhora que escrevera na revista Magnificat, dos jesuítas, precisamente sobre esse tema. 

O imperativo da paz construído em Fátima

Fátima também pode ser lida “como uma instância onde foi sendo construído o imperativo da paz”, diz o historiador António Matos Ferreira, professor da Universidade Católica Portuguesa e membro do seu Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR). “A guerra é um mal, que muitas vezes não é evitável, mas é um mal. A dimensão reparadora no contexto do que se passa no santuário de Fátima não é ‘mais guerra’, sempre foi ‘menos guerra’.”

André Melícias, coordenador do Arquivo e Biblioteca do santuário, olha para cartas e mensagens como as referidas enquanto reflexos da “ligação muito grande” de Fátima à Guerra Fria. “A questão que é valorizada é a do ateísmo, da perseguição religiosa, mais do que outros aspectos”. E quando se pede, nestas cartas, a “conversão da Rússia”, acrescenta, “é a questão do ateísmo que aí está, não é a do modelo económico socialista”. 

Bruno Cardoso Reis, historiador do Centro de Estudos Internacionais, do ISCTE, e que se tem debruçado sobre o fenómeno de Fátima, nota que no santuário se passou durante décadas a mensagem da necessidade de conter o comunismo ateu e do “choque” ou “ameaça real à civilização cristã na Europa”. Mas isso não significa, diz, “que o papado ou a Igreja Católica estejam a defender uma guerra”. 

Fátima tinha como que uma “utilidade: permitir dar também uma dimensão de paz ao combate contra o comunismo”. O que muda, acrescenta Bruno Reis, são as prioridades: “O que passa a ser prioritário é sobretudo a paz; o anticomunismo é completamente secundarizado.”

Tendo em conta a máquina de propaganda que o regime montara, a imprensa sujeita a censura e a resignação e desconhecimento da verdadeira realidade da guerra, por parte da maioria da população, Matos Ferreira contraria a ideia feita de que Fátima, de algum modo, legitimou a guerra colonial. “Houve um combate interno e seria até bastante empobrecedor para a história esquecer-se que em Fátima se travou uma conflituosidade sobre a legitimidade da guerra.” 

O historiador explica: “Fátima serviu, em muitas circunstâncias, para alimentar o nacionalismo colonial. As pessoas acreditavam que estavam a fazer um combate com sentido. Quando os peregrinos vão a Fátima, durante a guerra colonial, vão para pedir protecção.” Esse desiderato é, depois, “coberto por uma ideologia que assenta mais ou menos, de estar a defender a pátria, de estar a defender o Ultramar.” 

Numa guerra como aquela, acrescenta, em que a incorporação é obrigatória, “o que está em jogo é a vida das pessoas”. E foi num contexto de guerra, diz, que muitos dos jovens, porque regressaram salvos, “reavivaram uma religiosidade de gratidão”. Provavelmente, adianta, “ainda hoje vai gente a Fátima porque alguém da sua família esteve na guerra e não morreu ou, se morreu, porque alguma coisa restou…”

Gratidão e raiva

correio nossa senhora 1

Carta da mãe de Valentim Dias deixada em Fátima: “A ideia era agradecer [ter regressado] e era isso sempre que ela fazia.” Foto © António Marujo


Esse era, sem dúvida, o caso da mãe de Valentim Silva Dias. Maria da Conceição morreu há dez anos e foi já na década de 1970 que toda a família fez a viagem a Fátima em que a mãe deixou a carta que expressa a gratidão pelo regresso do seu filho. 

Valentim não se recorda de quando a mãe deixou a carta em Fátima. “A ideia era agradecer [ter regressado] e era isso sempre que ela fazia.” Lembra-se que a família – com os pais, a mulher e as filhas – foi várias vezes a Fátima com esse objectivo, mas não tem ideia de quando a mãe depositou aquela carta no santuário. A devoção à figura de Nossa Senhora era comum na família, as viagens a Fátima surgiam, por isso, como naturais. 

Maria da Luz Nabuco, de Aveiro, que toda a vida achou que a guerra “não fazia sentido”, diz que a fé foi aproveitada como argumento “para se fazer a guerra, mas os soldados tinham muita fé: agarravam-se a Nossa Senhora”. Ainda hoje, testemunha, muitos ex-combatentes que conhece continuam a ir a Fátima a agradecer.  

A história de António Guerreiro Calvinho, no entanto, levou-o a fazer o caminho inverso: coronel reformado, natural da Aldeia Nova de São Bento, fundador e antigo presidente da Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA) e hoje residente no Montijo, Calvinho resume: “Fui daqui para a guerra de certa forma com algum conteúdo cristão, católico. Cheguei lá, passei a agnóstico. Quando vim, era ateu.”

“Nunca houve da parte da entidade religiosa uma crítica aberta à guerra”, diz. E quando fazia alguma crítica, “normalmente era abafado, a Igreja escondia”, mas “não escondia a sua cumplicidade com a guerra”. O papel de Nossa Senhora de Fátima, acrescenta, “deveria ser ir junto dos políticos para que eles entrassem em diálogo mas não, não aconteceu” – provavelmente, o núcleo duro do fascismo não deixou”, admite. 

Um dia, numa operação militar, Calvinho ainda ensinaria outros camaradas a rezar: “Estava a tentar adormecer e ouvi um barulho esquisito. De vez em quando, acendia-se um isqueiro. Estavam a rezar o terço. ‘O isqueiro é para ver qual o mistério que se tem de rezar.’ Tinham um livrinho e eu disse: ‘Não acendam o isqueiro, vou-vos ensinar o método de rezar. Cada um reza para si, porque o barulho não vai resolver o problema e pode-nos prejudicar, podem localizar-nos. Aceitaram. No outro dia, [um deles disse:] ‘Nunca tinha rezado mentalmente! Também se reza mentalmente?’”

A experiência vivida levou-o à expressão poética. Publicou um livro com o título 30 Facadas de Raiva: “São trinta poemas, cada um é uma facada. E é a raiva que me leva a mim a escrever esses 30 poemas também. Uma raiva pura.”

“A 13 de Maio” é o título de um deles: “A 13 de Maio/ na cova da guerra/ no Catur:/ – eram todos soldados/ (mas só no medo)/ No Catur/ A 13 de Maio/ alguém aprendia a rastejar/ de medo.// … A 13 de Maio/ noutra cova:/ – outra gente/ da mesma gente/ arrastava o corpo/ e a alma/ … sangrava dos pés/ da longa caminhada/ oferecendo-se em/ holocausto/ para que os barcos/ continuassem/ a descarregar cadáveres!”

“Era esse o meu pensamento quando escrevi isso, porque a guerra iria continuar”, diz agora Calvinho, que participou na guerra colonial como alferes em duas comissões em Moçambique, nas zonas de Vila Cabral (actual Lichinga), Tete e Niassa. Aqui foi atingido pelo rebentamento de uma mina, em 1968, durante a segunda comissão. “Pum! Rebentou e não me lembro, só acordei com esta mão [esquerda] no ar, que é a que não foi queimada.” 

Os membros do lado direito ficaram com queimaduras e os efeitos da explosão haveriam de o obrigar, mais tarde, a amputar a perna direita, para evitar que ela gangrenasse. 

“O capitão que ia ao meu lado ficou reduzido a 11 quilos, só ossinhos torriscados.” Olhando para trás, António Calvinho admite: “Esse acontecimento poderá ter constituído o ponto de viragem. É o primeiro dia do resto da minha vida. Começa aí um calvário. Já tínhamos visto matar e morrer e já toda a malta cantava, com o ‘Cancioneiro do Niassa’: ‘eles comem tudo e não deixam nada’…”

“Foi um horror…”

Postal de Fátima enviado para Angola: O papel de Nossa Senhora de Fátima “deveria ser ir junto dos políticos para que eles entrassem em diálogo mas não, não aconteceu”, diz António Calvinho

A mudança de olhar operada em António Calvinho tinha muitos paralelos. Aldina Vaza, “madrinha de guerra” no Sobral de Monte Agraço entre 1962-68, nunca teve “nenhum afilhado que se queixasse da guerra e isso era uma coisa muito comum e estranha”. Mas ela própria só sentiu “verdadeiramente o horror do que era aquela guerra” quando entrou no lar da Cruz Vermelha, em Lisboa, em 1968: “Foi um horror, aí é que tive bem a consciência do que tinha sido aquela guerra para aqueles rapazes que partiam até com um certo orgulho.”

Esses mesmos estavam agora ali, diante dos seus olhos: “Destruídos. Foi um horror. Uns de cadeira de rodas, outros sem pernas, outros sem braços. Entrevistei um, que só tinha o tronco e a cabeça, estava estendido numa cama. Ali sim, havia muita revolta.”

O historiador Bruno Reis explica a evolução do olhar de muitas pessoas sobre a guerra, precisamente a partir do que eram as suas consequências: “Uma coisa é, em abstrato, inicialmente, as pessoas dizerem ‘bem, isto é alguma coisa que vale a pena defender’. Outra coisa é perceber que, ano após ano, os familiares, o marido, o irmão, o filho, vão ter de continuar a combater, eventualmente a morrer numa guerra para a qual não se vê um fim à vista.”

Estas cartas, acrescenta, identificam muito bem a tensão que se vai acentuando e o modo como também se vai intensificando o desejo de paz à medida que o conflito se prolonga.

Em 1967, já com seis anos de guerra, uma carta sem identificação refere-se à visita que, em Maio desse ano, o Papa Paulo VI fará a Fátima. E acrescenta: “Peçovos pelos meus irmãos auzentes no Ultramar. Também os soldados de Angola precisam de ti.”

Além da “mãe aflita” do Alentejo, citada no início, uma outra carta, escrita em Maio de 1966, em papel timbrado da Escola Comercial Ferreira Borges, em Lisboa, apresenta oito pontos. No segundo, pede a autora: “Senhora do Rosário fazei com que a guerra acabe para regressar a paz a Portugal.”

Em Maio de 1967, uma O. do centro do país, que se apresenta como “pedinchona 100%, super-pedinchona”, é clara no quadro ao apresentar o sofrimento em que as famílias tinham entrado: “Em primeiro de tudo querida Mãe, peço-te pelo regresso do meu Mano (E.) de Moçambique. Tu bem sabes o que tenho sofrido por ele e pela minha querida Mãezinha. Como ela tem sofrido. Dá-lhe e dá-me a maior consolação é o regresso do meu querido Mano. (…) Peço-te também pela paz no mundo, por todos os militares em especial os: (A.J., E., D., C., S.), etc…

Meses mais tarde, uma outra mulher descrevia um quadro social semelhante ao de Angola, mas no ex-Congo Belga (actual RD Congo): “…aqui no continente negro, onde a tranquilidade e a paz são bem flutuantes actualmente! Não nos sentimos seguros como é natural! Assim, eu peço-te Mãe Querida, que façais com que o meu marido tenha oportunidade de liquidar todos os seus negócios, afim de podermos regressar tranquilos a Portugal.”

“Adeus. Minha querida Mãe. até ao dia da minha vinda!”

Aerogramas trocados entre Portugal e Angola: “Dai-me a graça de eu voltar são e salvo para depois vos vir agradecer e dar graças que hoje aqui vos promete amar-vos cada vez mais”, pedia um militar. Foto © António Marujo

No final do tempo de guerra, poderiam permanecer sentimentos de raiva como os de António Calvinho. Muitos ex-combatentes, aliás, ainda hoje mantêm a desilusão com uma sociedade e um Estado que não os recompensou do facto de terem vindo com incapacidades físicas ou psicológicas permanentes. 

Os sócios das ADFA hoje, têm uma média etária de 72 anos, diz o seu actual presidente, coronel Lopes Dias. Neste momento, a grande preocupação é a necessidade de lares e do agravamento das deficiências. “As dependências cada vez são maiores, as próprias esposas ou companheiras também estão velhas como eles… E temos já, neste momento, sócios nossos, até grandes deficientes, que são eles próprios a tratar das suas companheiras. E esta é uma questão em branco e que não está a ser tratada.”

Frustração, medos superados, angústia. Ou, também, a gratidão por ter sido possível o regresso: através da ADFA ou da Liga dos Combatentes, vários antigos militares com quem foi possível falar, contam como mantinham uma devoção especial com a figura da Senhora de Fátima e testemunham aqueles sentimentos. 

Idílio Amaral, de Viseu, ainda hoje sonha com o momento da partida para Angola. Teve um companheiro a morrer-lhe nos braços, no norte de Moçambique, cujas últimas palavras foram “mãe, mãezinha”, recorda agora. 

Manuel Antunes, hoje emigrante no Canadá, regressa todos os anos a Fátima, onde vai agradecer, com o filho e a mulher, canadiana, o ter regressado são e salvo. Rezava todos os dias invocando a Senhora de Fátima. “Era a minha protectora, a minha fé foi fortificada na guerra.” Mas, se tem fé em Fátima, já não tem fé na guerra: “Não concordava nem com aquela nem com outra guerra. O meu pai criou nove filhos sem bater em nenhum. Não acredito em violência, não deve haver guerra.”

Numa das cartas depositadas no “Correio de Nossa Senhora”, já depois de regressado, P. escrevia, usando apenas maiúsculas nas costas de uma fotografia: “Constituindo promessa, por graça recebida de Nossa Senhora de Fátima, ofereço a minha foto sinceramente reconhecido pelo meu feliz regresso à metrópole.”

Pedidos e promessas, angústias e esperanças. Uma outra carta arquivada em Fátima, em 1967, diz: “Dai-me a graça de eu voltar são e salvo para depois vos vir agradecer e dar graças que hoje aqui vos promete amarvos cada vez mais (…) Minha mãe do Céu prometo-vos vir a pé daquela longe terra e rastejar desde a cruz alta até ao fundo da escadaria para melhor vos saber agradecer. Adeus. Minha querida Mãe. até ao dia da minha vinda!”

Quem seria este homem? Teria ele regressado?…

 

Esta investigação teve o contributo, nas entrevistas, do jornalista Joaquim Franco, então a trabalhar na SIC, onde foram emitidas três reportagens com base neste trabalho, com o título genérico Livrai-nos da Guerra. O trabalho foi possibilitado pela Bolsa de Investigação Jornalística da Fundação Calouste Gulbenkian atribuída em 2018. O conjunto dos trabalhos pode ser também visto e consultado na página da Fundação

 

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