[Ascensão do Senhor. Dia mundial das comunicações sociais― a ―2023]

[falta-me só a falta / invisível crer puro ― / nuvem branca, meu olhar! © Joaquim Félix]
1. O que acabámos de ouvir fez-me abrir novamente um livro breve.
Refiro-me ao ensaio «Os olhos da pele. A arquitetura e os sentidos».
Juhani Pallasmaa, de nacionalidade finlandesa, é o seu autor.
No prefácio a este livro, intitulado «Gelo fino»,
Steven Holl salienta que Pallasmaa, com um «forte ruído de fundo» (…)
«evoca nossa solidão contemplativa e empenho ―
o que ele já chamou de “A Arquitetura do Silêncio» (Os olhos da Pele, vi).
Pallasmaa explora «a profundidade do nosso ser»,
a partir dos muitos recursos da sensibilidade,
isto é, a desde a perceção dos sentidos, de todos eles, os cinco.
2. A obra é um convite a colocar o corpo no centro.
E a fazermos um jogo, não com as ânsias do final do campeonato,
mas na experiência quiástica entre ‘o visível e o invisível’,
a fazer recordar uma obra de Merleau-Ponty,
que serve de fonte-de-fundo para a fenomenologia de Pallamaa.
Ao pedirmos ao Espírito Santo que nos acenda todos os sentidos
obtemos a possibilidade de fazer uma profunda experiência de Jesus.
Pela arquitetura da fé, vemos mais do que só com os olhos.
Isto é, libertamo-nos da cegueira da perceção,
que vai para além do confinamento aos olhos.
Os olhos são importantes, sim, e deles cuidamos atentamente.
Porém, para desenvolvermos a fé, não basta priorizá-los.
Até porque eles são narcisistas, tendentes à autonomia exasperada,
sempre prontos a dizer aos outros sentidos: «Não precisamos de vós!».
Algo que, aqui na igreja da Misericórdia de Barcelos, não dizemos de vós,
que nos seguis nos vários lares, através da transmissão da missa.
3. Segundo David Michael Levin, que Pallasmaa cita,
«o desejo de poder é muito forte na visão.
Há uma tendência muito forte na visão a agarrar e a fixar,
a considerar como concreto e a totalizar:
uma tendência a dominar, fixar e controlar que, por ser tão ferozmente promovida,
em determinado momento assumiu uma hegemonia incontestável na nossa cultura
e seu discurso filosófico, estabelecendo,
ao manter a racionalidade instrumental da nossa cultura
e o caráter tecnológico da nossa sociedade,
uma metafísica da presença centrada nos olhos» (Levin, Decline and Fall, 205).
Quem é que não se sente pungido por este ‘sorvedouro ocular’?
Porém, se desejarmos continuar a viver, melhor, a conviver,
juntamente com Jesus e todos quantos n’Ele nos são irmãos,
necessitamos de um exercício de perceção amplo, multissensorial.
4. «Dito isto, elevou-Se à vista deles
e uma nuvem escondeu-O a seus olhos» (At 1,9).
Com a ‘pergunta branca’ das testemunhas, que os desloca à sua origem:
― «Homens da Galileia, porque estais a olhar para os Céus?» (At 1,11) ―,
descobrimo-nos também nós muito presos ao rasto da visibilidade.
E, como eles, custa-nos aceitar a nuvem que nos cobre a realidade.
― Porquê? Porque esquecemos que a visibilidade é a ‘sombra do invisível’.
Queremos ver tudo, tocar tudo como Tomé ou Maria Madalena.
Apropriamo-nos de tudo, como crianças na fase de agarrar quanto veem.
Custa-nos aceitar o sábio aforismo ‘esculpido’ por Fernando Pessoa:
«A realidade é o gesto visível das mãos invisíveis de Deus».
E, por conseguinte, é neste ausentar-se, como ao partir do pão em Emaús,
que Jesus institui o ‘modo sacramental’ de conviver com os discípulos.

[A Ascensão assinala-nos a privação da presença incarnada de Jesus./ Porém, é justa e necessária esta «perda», que estabelece outro ‘estar’. © Joaquim Félix]
5. A Ascensão assinala-nos a privação da presença incarnada de Jesus.
Porém, é justa e necessária esta «perda», que estabelece outro ‘estar’.
Recordado do que disse, terça-feira passada, a teóloga Isabella Guanzini,
sublinho a urgência de vivermos com alegria o desejo do Seu retorno,
que se vive, no entre-tanto dos dias, sob a neblina matinal a fecundar a realidade.
Mais: assumir este sentido da perda da visibilidade, esperando dela, dessa ‘falta’,
ajuda-nos a superar a tentação de dominar a religião com uma obsessão maníaca,
ou, então, de a abandonar, sem combate espiritual, através da nostalgia.
Renunciemos, pois, à vontade incestuosa de tudo possuir,
para sermos fiéis e obedientes a este ‘segredo’, à ‘nuvem’ do invisível,
que parece ocultar-nos um Deus que nos foge para a distância celestial.
6. S. Lucas é o único evangelista a narrar este ‘acontecimento da fé’,
no início do livro dos Atos dos Apóstolos (cf. At 1,1-11)
e na conclusão do Evangelho que escreveu (cf. Lc 24,46-53).
Trata-se de uma grande inclusão ‘lucana’,
que sintetiza, à luz da Ascensão, tudo o que cuidadosamente escreveu.
Ao contrário dos outros evangelistas,
que incluem este mistério no próprio evento da ressurreição do Senhor,
Lucas prefere fazer dele uma nova narrativa da ressurreição,
à semelhança das aparições que Jesus faz às mulheres e aos discípulos.
Na verdade, Jesus após a ressurreição aparece-lhes sucessivas vezes,
a fim de prepará-los para a ocultação definitiva da sua presença física,
e de os habituar a reconhecê-Lo espiritualmente presente na Igreja,
através de muitos sinais, a discernir à luz da fé.
7. No seu primeiro livro dedicado a Teólifo (amigo de Deus),
Lucas narra todas as coisas que Jesus fez e ensinou,
inclusive as instruções que deu aos seus discípulos
durante o tempo em que lhes apareceu entre a Ressurreição e a Ascensão.
De notar que se trata de uma preparação de quarenta dias,
o mesmo tempo com que Jesus, no deserto, se preparou para a Paixão.
O simbolismo da ‘quarentena’ revela o difícil ocultamento aos olhos:
para os discípulos que, como evidencia Lucas,
a fim de chegar à fé na ressurreição, tiveram de contar com «muitas provas»;
e para Jesus que, não obstante o gozo de ser glorificado definitivamente,
se esforçou por garantir a «alegria completa» aos discípulos, no mundo.
Deus concede-nos uma nuvem, não para nos ‘esconder’ Jesus,
mas para aprendermos a ver, no mundo, o invisível, e a dele esperar.
Eis porque as Escrituras ajudam a passar os olhos do céu à terra.
8. Na Ascensão, o Senhor constitui-nos suas testemunhas;
sim, de tudo aquilo que estava escrito a respeito do Messias
e se cumpriu definitivamente no seu mistério pascal:
não só do seu sofrimento e da sua ressurreição ao terceiro dia,
mas também na pregação, em seu nome,
do arrependimento e do perdão dos pecados a todas as nações.
E, note-se, havemos de ser testemunhas ao estilo de s. Lucas,
como quem narra tudo a um ‘Teófilo’, isto é, a um ‘amigo de Deus’.
9. A quem vive da bem-aventurança de crer sem ver, o Senhor assegura:
«Recebereis a força do Espírito Santo, que descerá sobre vós» (Act 1,8).
É esta a grande bênção do Senhor,
que fortalece a nossa fé e transfigura a nossa vida.
É esta a força que S. Paulo pede para os Efésios, extensível para nós:
«O Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória,
vos conceda um espírito de sabedoria e de luz para O conhecerdes plenamente
e ilumine os olhos do vosso coração,
para compreenderdes a esperança a que fostes chamados,
os tesouros de glória da sua herança entre os Santos
e a incomensurável grandeza do seu poder para nós os crentes» (Ef 1,17-19).
10. É o Espírito que nos habilita a correr o mundo
com a cooperação do Senhor e os sinais quotidianos do Evangelho:
no amor que permanece, no coração arrependido e grato,
nos lábios purificados e, também, nos ouvidos seletivos.
Hoje, Ele dá-nos meios de comunicação social sofisticadíssimos,
a usar com sabedoria e verdade, para difundir ‘belas notícias’.
Com os olhos do coração iluminados, a ver o invisível que se revela,
será mais fácil «comunicar cordialmente», segundo o Papa Francisco.
Na mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais,
ele assinala uma condição de base, a promover cada vez mais:
«Para se poder comunicar testemunhando a verdade no amor,
é preciso purificar o próprio coração.
Só ouvindo e falando com o coração puro
é que podemos ver para além das aparências,
superando o rumor confuso que, mesmo no campo da informação,
não nos ajuda a fazer o discernimento na complexidade do mundo em que vivemos.
O apelo para se falar com o coração interpela radicalmente este nosso tempo,
tão propenso à indiferença e à indignação,
baseada por vezes até na desinformação que falsifica e instrumentaliza a verdade».

[ É o Espírito que nos habilita a correr o mundo / com a cooperação do Senhor e os sinais quotidianos do Evangelho:/ no amor que permanece, no coração / arrependido e grato,/ nos lábios purificados e, também, nos ouvidos seletivos.© Joaquim Félix]
11. Que podemos fazer para transferir o ver dos olhos ao ver do coração?
S. Leão Magno aponta-nos o ‘lugar’ aonde fixar o nosso desejo, dizendo:
«Nisto consiste, efetivamente, o vigor das almas grandes e a luz dos corações fiéis:
crer, sem hesitar, naquilo que não se vê com os olhos do corpo,
e fixar o desejo aonde não pode chegar a vista.
Como poderia nascer esta piedade,
ou como poderíamos ser justificados pela fé,
se a nossa salvação consistisse apenas naquilo que nos é dado ver?»
(S. Leão Magno, Sermão 2 da Ascensão).
Joaquim Félix é padre católico, vice-reitor do Seminário Conciliar de Braga e professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa; autor de vários livros, entre os quais VERNA. Este texto corresponde à homilia da Ascensão do Senhor. Dia mundial das comunicações sociais, do passado Domingo, dia 21 de maio, 2023.