
“O negacionismo e a desconfiança relativamente às vacinas (ainda que minoritários – e felizmente!) são ímanes que atraem o vírus e afastam o altruísmo, que perpetuam o medo e assassinam a esperança.” Foto-©-ShutterStock
14 de dezembro de 2021. Apareci nas notícias: sou um dos 3591 novos casos de infeção por covid-19. Bem tentei, mas não consegui: cancelei jantares grandes, privilegiei estar só com a minha família e amigos mais próximos, evitei ambientes com demasiadas pessoas, reforcei a máscara, andei menos de transportes públicos, cumpri todas as regras e recomendações e, mesmo assim, o vírus entrou cá em casa. Bem sei que sou um privilegiado: os sintomas foram leves, a minha família não sentiu nada demais e – acima de tudo – conseguimos não infetar mais ninguém.
Em quase dois anos, construí dezenas de cenários mentais para a possibilidade de ficar infetado (se é que já não é certo que todos vamos apanhar o vírus): como me isolava, quem tinha de avisar, como é que ia aguentar uma série de dias trancado no quarto. E, mesmo assim, quando a bomba “SARS-CoV2: DETETADO” chegou através de uma notificação às quatro da manhã, fiquei em pânico. Dois anos e dois confinamentos depois, com vacinação completa e (pensava eu) totalmente habituado à pandemia, petrifiquei durante quinze minutos. Porquê?
Na verdade, porque a pandemia é verdadeiramente assustadora. Se pensarmos que em dezembro de 2019 (e agora deixando de lado todas as dúvidas sobre a origem do vírus), um morcego ou uma cobra infetou uma comunidade inteira na China; que, em pouco mais de três meses, o vírus se transportou, de pessoa em pessoa, da Ásia para o resto do mundo; e que, passados praticamente dois anos, dezenas de milhares de pessoas continuam a ficar infetadas por dia, só em Portugal – não há como não ficar em pânico quando se recebe um resultado positivo.
Mas não é só ao alto índice de transmissibilidade que devemos o medo do vírus: também nós temos a nossa quota-parte de responsabilidade. É preciso divulgarmos os números de infetados todos os dias? Quantas matrizes de risco, RTs e incidências já vimos desde março de 2020? Por quantos relatos de infetados, na situação X, Y ou Z, já nos cruzámos nos media? A pandemia está em todo o lado e a toda a hora – e não é por isso que a sociedade se tornou mais preocupada com o Próximo.
Voltemos aos números de infetados. São inegáveis os efeitos positivos da vacinação – muito menos mortes e casos de doença grave, apesar das variantes que persistem em aparecer sequencialmente. Mas continuam a morrer pessoas por covid-19, outras tantas a ficarem internadas. Há quem ainda sofra por ver pessoas de quem gosta a lutar contra o vírus. Há quem ainda demore meses a recuperar. E nós, do topo do nosso pedestal de “sintomas ligeiros”, já dizemos, por vezes quase automaticamente: “As pessoas vacinadas que morrem por covid têm outras co-morbilidades.” Ou, pior ainda: “Há apenas uma morte a lamentar.” Tudo isto é um indício de que o ansiado fim da pandemia e do medo se aproxima, sim – mas não deixamos de falar de pessoas.
E se, no início da pandemia, a sociedade homenageou os profissionais de saúde, se mobilizou em massa para que os mais frágeis não tivessem de sair de casa e se recolheu em prol da proteção de todos, o que hoje vemos é um progressivo desleixamento em relação ao Próximo. Os confinamentos e a distância física podiam ter aumentado o nosso desejo em reencontrar o Outro e em sabê-lo bem, mas acabaram por se revelar um dínamo para acelerar o egoísmo, a irresponsabilidade cívica e a falta de sentido de comunidade. O negacionismo e a desconfiança relativamente às vacinas (ainda que minoritários – e felizmente!) são o maior exemplo disto. São ímanes que atraem o vírus e afastam o altruísmo, que perpetuam o medo e assassinam a esperança.
Em agosto de 2021, o Papa Francisco afirmou que “vacinar-se é uma forma de proteger os mais frágeis, um pequeno gesto de amor” – tal como comprar um íman a alguém de quem gostamos durante uma viagem. Pena é haver quem ainda ache ímanes foleiros. A mim parecem-me excelentes presentes para se oferecer – principalmente aos mais frágeis.
Alexandre Abrantes Neves é estudante de Comunicação Social e Jornalismo na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa.