
“A crónica devora-nos, engole-nos nesse abismo de tudo poder ser qualquer coisa a todo o instante.” Foto: Página Facebook António Lobo Antunes (Grupo)
O António Lobo Antunes acaba por dizer, num dos seus textos, que terminar uma crónica é fácil: “Põe-se o ponto final e deixa-se o resto da página em branco, pronto.”
Cá para mim escrever crónicas é a maneira mais dolorosa de dar significado ao insignificante. A crónica – quando se lê Clara Ferreira Alves, António Lobo Antunes, Rui Zink, Miguel Esteves Cardoso – parece a forma literária de mais fácil execução, como se aquilo que se lê sempre tivesse estado lá, assim tão óbvio.
Ser cronista é ver a vida por dentro.
Se calhar é também por isso que o António Lobo Antunes, nesse mesmo texto, diz que as crónicas lhe estragam o ritmo dos romances. A crónica devora-nos, engole-nos nesse abismo de tudo poder ser qualquer coisa a todo o instante.
Cito agora o João Tordo, numa entrevista para a rádio: “O escritor nunca descansa. Quando se escreve, o enredo somos nós a toda a hora, ainda que não estejamos na frente do computador a escrever, na nossa cabeça a história está a acontecer.”
Vou beber um copo de água.
Tudo pode ser a crónica da semana, mas como transformar o despercebido em objeto intensamente observado?
A mulher que encostou o carro na berma da 125, com o pneu furado; o café mal servido na praça da alimentação do Algarveshopping; o ego dos performers no evento do halloween; a visita ao psiquiatra duas vezes na mesma semana; a abertura do telejornal, ao fundo, com os comentadores da guerra em alvoroço enquanto sirvo a sopa para o jantar; etcetera, etcetera, etcetera…
E agora, aqui na frente da tela, dou por mim a pensar que estas crónicas me parecem o diário da adolescência, tudo lá cabe. Até o que se esconde grita nestas crónicas (acho que já escrevi isto antes, não me lembro bem, pode ser que só tenha sonhado). E, às vezes, o grito é tão vazio que não me aparece uma sequer imagem para salvar o compromisso com a página; então sei que quando não há uma crónica por escrever é porque a vida murchou. Se não há nada à flor da pele a urgir para a ponta dos dedos é porque adormecemos.
Querido António… já nos disseste como terminar uma crónica: “mete-se o ponto final e deixa-se o resto da página em branco, pronto.”.
Fico então a aguardar que nos digas como se começa e como se desenrola a escrita da mesma, é que eu gostava muito de aprender a olhar para as insignificâncias como fonte do essencial.
Ana Sofia Brito começou a trabalhar aos 16 anos em teatro e espetáculos de rua; Depois de dois anos na Universidade de Coimbra estudou teatro, teatro físico e circo em Barcelona, Lisboa e Rio de Janeiro. Autora dos livros “Em breve, meu amor” e ” O Homem do trator”.