
“Fico sempre espantada com gentileza dos melhores. Poderiam ser os mais arrogantes, mas não, são delicados e generosos.” Foto © Inês Patrício
Nos seus cinco anos pediu, de repente, que parássemos o carro. Parámos no meio do trânsito. Saímos as duas. Ela começou a chorar. À nossa volta ruído e confusão. Caminhámos. Ela só disse que não se sentia bem. Sei que não fala ao acaso. Não quer falar ao acaso. Precisa de tempo. Por isso caminhámos as duas. Mais à frente sugeri que parássemos. Ela aceitou. Sempre a chorar baixinho afastava-se sempre de mim, uns quatro metros, virava-me as costas. Eu sentei-me. Ela ia conferindo que eu continuava ali e que estava atenta, mas virava-se e chorava. Lá disse que estava enjoada. Assim de a observar percebi que não queria que a visse a vomitar, caso acontecesse. Várias pessoas apareceram e tentaram ajudar, para desespero dela. Afastaram-se. Eu senti uma grande calma. Só me restava ter calma, não querer resolver, esperar apenas. Estar. Ela ensina-me imensas coisas, nem imagina.
Na Alemanha, a formação contínua no trabalho é, muitas vezes, obrigatória. É comum ter-se um número de créditos a cumprir por ano. O empregador suporta os custos. Para muitos parece ser uma chatice. Voltar aos bancos da escola. Para mim é uma delícia. Discutimos com colegas e ganha-se a sensação de unidade. Temos ali pessoas que sabem e nos transmitem, em algumas horas, o que demoraríamos anos a aprender sozinhos. Receber. Fico sempre espantada com a gentileza dos melhores. Poderiam ser os mais arrogantes, mas não, são delicados e generosos.
Os Macadame cantam “como pode o sol ser velho, se nasce todos os dias?” E fico invariavelmente presa à frase. Não sei mesmo se alguma vez ouvi o resto da letra. É que cheguei ao meio da vida. Já me disseram. Mas oiço aquela música e todas as semanas vejo uma mulher com mais de 80 anos, que mal consegue dobrar os joelhos, a dançar, e ela é maravilhosa. Todos os movimentos sentidos e bonitos. Os olhos brilhantes, profundos, parecem que nos vêem a nuca. Dançar. Aprendo com ela e nem falamos.
Maurice Bellet escreveu: “Aprendei que nenhuma regra produz a verdade, que o horizonte permanece sempre horizonte (mesmo que mude de cor ao longo do caminho), que não é bom para o homem estar só. Aprendei a respirar, a comer, a dormir, a falar e a calar-vos. Aprendei a ler. Aprendei a servir-vos bem dos vossos olhos, dos vossos ouvidos e das vossas mãos. Aprendei a aguentar-vos de pé.” Hoje foi mais um dia triste de eleições para mim. Berlim quer virar à direita. Para mim, os dias de eleições começam sempre com sol e esperança e terminam, quase sempre, escuros e tristes. Também isso tenho de aprender. Reaprender sempre e a cada vez. Abrir os olhos. Aguentar. Aqui, hoje, a espera não é calma, é inquietação.
Inês Patrício é médica, vive em Berlim com o marido de olhos de mar e uma filha solar.