
D. José Cordeiro, arcebispo de Braga. Foto © Direitos Reservados
Havia menos gente na missa das 11h da manhã deste domingo, em Joane (Famalicão), conta ao 7MARGENS uma pessoa que esteve na celebração. A razão foi uma prova de atletismo que não se realizava há mais de dois anos por causa da pandemia. Houve mais gente na missa das 8h da manhã mas, mesmo assim, a igreja do Divino Salvador de Joane encheu com cerca de 200 pessoas que ouviram o arcebispo de Braga, José Cordeiro, dizer que a denúncia de abusos em Joane (Famalicão) e a consequente exposição mediática da comunidade é uma experiência que “pode contribuir para o aprofundamento de um processo de purificação” que a Arquidiocese de Braga está ainda a iniciar.
“Este caso pode vir a destapar ainda mais coisas”, diz um padre de Braga, comentando o gesto do arcebispo e a divulgação do comunicado da Arquidiocese, no sábado ao final do dia. Nesse documento, manifestava-se “dor e sofrimento” pelas denúncias aparecidas numa reportagem da RTP, sexta-feira à noite, que relatava situações de homens e mulheres vítimas de abusos por parte do cónego Manuel Fernando Sousa e Silva em Joane, e prometia a criação imediata de “um serviço de escuta” para ouvir vítimas. (ver 7MARGENS)
“Esta direcção que a diocese de Braga tomou vai permitir que outras a adoptem também”, comenta o mesmo padre, que considera que a prioridade escolhida pelo arcebispo, neste momento, é a escuta das vítimas. “Trata-se de as colocar no centro do processo, trazendo ao de cima o sofrimento que está a magoar a vida de muitas pessoas”, comenta.
Ao mesmo tempo, este caso pode ajudar a destapar vozes que estavam bloqueadas: “Houve processos de esquecimento involuntário por parte de muitas vítimas e quando aparecem casos como este, há coisas que vêm à memória. São os acontecimentos-gatilho, como diz o padre Hans Zollner”, responsável do Vaticano para o combate aos abusos sexuais.
Mas nem todos estarão de acordo com esta estratégia. Na página oficial da Arquidiocese na rede Facebook, a publicação do comunicado de sábado motivou já, até este domingo à noite, mais de 160 comentários, vários dos quais de padres do clero de Braga. Um deles, o padre Manuel Joaquim Carvalho Fernandes, que foi já arcipreste de Famalicão (ou seja, coordenador do clero do concelho) não escondeu a crítica ao arcebispo e ao comunicado: “Conheço o Senhor Cónego Fernando Sousa e Silva desde o 6º ano do Seminário. Sempre teve um comportamento correctíssimo comigo e com os meus colegas. Nunca ninguém se queixou de qualquer atitude menos correcta. Sei do cuidado que ele sempre teve no atendimento no Confessionário”, escreve, referindo-se ao facto de a maior parte das queixas serem respeitantes aos momentos da confissão.
O padre Manuel Joaquim acrescenta a seguir, dirigindo a sua crítica contra os factos divulgados e também ao anúncio da diocese de que o padre Sousa e Silva tinha sido sujeito a várias sanções: “Como é possível inventar esta cabala? Como é possível que a nossa arquidiocese receba como provado e divulgue isto sem haver certeza comprovada? Como é possível que a nossa arquidiocese trate assim um sacerdote? Estamos à mercê de qualquer artista disposto a desfazer uma pessoa! Quem nos poderá defender?”
“Muito emocionante”

Na mensagem que dirigiu aos católicos reunidos na missa em Joane, o arcebispo José Cordeiro reiterou o tom do que já tinha sido expresso no comunicado da véspera: “Foi com profunda tristeza e imensa dor que recebi a notícia de que alguns membros da comunidade estão a sofrer e que o seu sofrimento chegou aos meios de comunicação social, através da denúncia de abusos cometidos durante a celebração do Sacramento da Reconciliação”, afirmou, de acordo com o texto disponibilizado na página oficial da Arquidiocese na internet.
O que se passou na missa, diz a testemunha antes citada, “foi muito emocionante”. Houve várias pessoas com lágrimas nos olhos por causa da presença do arcebispo. A ponto de a pessoa que foi ler a “oração universal” não conseguiu fazê-lo até ao fim, tendo de ser substituída pelo pároco.
“Às vítimas e a toda a comunidade paroquial, que se sente provada na fé e escandalizada, desejo manifestar o meu carinho e a minha proximidade e pedir humildemente perdão”, acrescentou o arcebispo, que repetiu depois os passos dados pela Arquidiocese e que são referidos no comunicado. E admitiu: “É preciso reconhecer que, neste caso, a Igreja falhou no seu dever de proteger os mais frágeis e vulneráveis. Desejo criar as condições para que todas as vítimas possam ser acolhidas, escutadas e acompanhadas.”
Nesse sentido, a Arquidiocese tem disponíveis um endereço electrónico (comissao.menores@arquidiocese-braga.pt) e o telefone 913 596 668.
O comunicado de sábado e a presença do arcebispo no domingo podem ser um “momento de viragem na abordagem deste assunto”, considera o padre ouvido pelo 7MARGENS. Ele traduz a vontade de abrir a hierarquia católica “à escuta das pessoas” e permite trazer ao processo de combate aos abusos uma “tremenda credibilidade”, de quem “não se refugia atrás de palavras vazias”.
Obviamente, admite, isto traz o reverso da medalha: “Os danos que provoca são os da exposição da vida de uma pessoa na praça pública, com a consciência da comunidade de que havia comportamentos intoleráveis.” Além disso, está em causa também o facto de, durante duas décadas, ter havido queixas alegadamente apresentadas ao então arcebispo Jorge Ortiga e que podem ter sido ignoradas ou, pelo menos, não tidas em conta na sua plenitude. Mas essa questão da eventual ocultação de crimes de abuso pode ser para um segundo momento, avalia o mesmo padre.
Vários bispos que estiveram ou estão no activo podem vir a confrontar-se com decisões que tomaram no passado e que hoje aparecem como incompreensíveis, diz. “Não se pode pôr de lado a dimensão jurídica, mas a dimensão pastoral surge, neste momento, como prioritária”. E a reportagem da RTP, ao mostrar várias pessoas com histórias semelhantes, deu um “peso de credibilidade aos relatos”, verifica o clérigo bracarense.
Dehonianos à escuta de eventuais vítimas
No final de uma semana cheia de notícias sobre os abusos sexuais, a Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos) anunciou a criação de um endereço de correio electrónico “para favorecer a denúncia de eventuais casos de abuso de menores e pessoas vulneráveis nas instituições da congregação em Portugal”: escutarecuidar@dehonianos.org
Num comunicado disponibilizado na página dos dehonianos na internet, a congregação refere a notícia de sábado, dia 1, no Público, dando conta da investigação pelo Ministério Público de denúncias de que José Ornelas Carvalho, actual bispo de Leiria-Fátima e antigo superior geral da congregação, teria encoberto eventuais casos de abuso de menores em instituições ligadas aos dehonianos, em Moçambique, no ano de 2011, além de “crimes ocorridos em Portugal” – que nunca são explicados na notícia.
A congregação, “tal como D. José Ornelas e toda a Igreja Católica no nosso país, reiteram o seu compromisso de proteger os menores e outras pessoas vulneráveis, dispondo-se a colaborar com a justiça, em âmbito civil e canónico, sempre a favor da verdade e da justiça”, diz o comunicado.
Manifestando a sua solidariedade com o bispo, a quem agradecem os 50 anos de consagração religiosa, o comunicado acrescenta que a congregação se revê nas declarações do bispo, bem como nas declarações do comunicado da Conferência Episcopal.
Em declarações sobre o caso à CMTV, neste domingo, o bispo José Ornelas reiterou que está de consciência tranquila e que os casos de Moçambique foram “convenientemente tratados”, nomeadamente pelas autoridades locais e autoridades locais da congregação, com quem esteve em “articulação”.
O antigo superior dos dehonianos acrescentou ainda que reconhece a existência de casos de pedofilia na Igreja, mas não que esta seja acusada de “pedófila”. E acrescentou que o tema fez parte também da conversa com o Papa, no sábado.