
O padre Arlindo Magalhães celebrando um batismo na Comunidade da Serra do Pilar. “Alguns dos melhores momentos da nossa vida foram também celebrados em Comunidade. O batismo dos nossos filhos foi um deles”, recorda Laura Marques. Foto: Direitos reservados
Conheci o presbítero Arlindo numa celebração da Vigília Pascal. Fui com um amigo que me convidou. Tinha 18 anos e fiquei fascinada com a intensidade celebrativa da comunidade da Serra do Pilar e a beleza derramada em luz e canto. Integrei essa comunidade e lá permaneci por longos anos.
Com o Arlindo aprendi a viver a graça de cada momento, a alegria na simplicidade, partilha e acolhimento mútuo. Aprendi a aprofundar as razões da minha fé e a questionar as “verdades” estabelecidas. Fiz o catecumenato de adultos que ele orientou e que muito valorizava. Já tinha feito a catequese da infância, tinha participado em grupos de jovens cristãos, tinha integrado o Movimento Católico de Estudantes, o Movimento de Ação Católica e tinha sido crismada. Tinha também feito o Curso Superior de Cultura Religiosa da Torre da Marca. Testemunho que foi uma experiência marcante. Quatro anos a reunir duas vezes por semana com o grupo, rezando, refletindo e partilhando. Estudando e celebrando a vida plenamente. Tentando viver o dia a dia à maneira de Jesus. Colocando perguntas, buscando respostas, trilhando caminho todos juntos e entreajudando-nos uns aos outros.
A liturgia alimentava a vida da comunidade. Cada detalhe era importante e trabalhado com cuidado. As crianças tinham uma celebração da palavra paralela na sacristia, adaptada à sua idade, e entravam a cantar no momento do ofertório, na igreja redonda com a comunidade reunida à volta do altar central em forma de masseira.
O momento alto era a Vigília Pascal que todos os anos se reinventava, qual ressurreição antecipada.” Esta é aquela noite…”
O Arlindo desafiava-se sempre a si próprio e a todos nós a vivermos e fazermos diferente, melhor, mais belo, mais pleno. Era um homem cheio de contrastes. Era capaz da ternura mais tocante e da mais implacável crítica que nos deixava desconcertados, por vezes feridos. Era um homem de Cultura: em comunidade calcorreamos lugares e monumentos com história religiosa e humana, em passeios e acampamentos sempre com vertente lúdica e cultural. Organizaram-se debates e tertúlias, cinema com discussão posterior, conferências, encontros.
A Presidência Leiga da Comunidade da Serra do Pilar, empossada pelo bispo do Porto quando o Arlindo foi completar o doutoramento em Salamanca, representou uma realidade tão saborosa e inovadora! A concretização da comunidade dos fiéis participando de forma responsável e autónoma.
Visitar e acolher outras comunidades na celebração dominical única em que nos congregávamos semanalmente era outro momento forte. Recordo a visita de uma comunidade de irmãs moçambicanas que nos brindaram com um cântico africano belíssimo que aqueceu os nossos corações.
Participei nos diversos serviços da Comunidade ao longo dos anos, desde a limpeza ao coro, passando pela catequese. Tornei-me catequista à força, por ultimato do Arlindo, e foi uma experiência que ultrapassou todas as minhas expectativas. Todas as semanas montávamos e desmontávamos a tenda, tal como na Bíblia, para proporcionarmos às crianças uma experiência da fé e da descoberta de Jesus.
A prática do ecumenismo foi também um ponto que destaco. As orações conjuntas com a Comunidade do Torne mantiveram-se com constância ao longo dos anos. Tivemos também encontros muito interessantes com muçulmanos e judeus que nos ajudaram a reconhecermo-nos mutuamente.
Quando o meu filho mais velho morreu de morte súbita, aos 12 anos de idade, a nossa família foi escorada pela Comunidade que se uniu à nossa volta, partilhando a nossa dor, assombro e incompreensão (quem poderá compreender a morte de uma criança?). A Comunidade partilhava um só coração e uma só alma.
Alguns dos melhores momentos da nossa vida foram também celebrados em Comunidade. O batismo dos nossos filhos foi um deles. Anualmente organizava-se uma celebração no tempo pascal em que eram batizadas as crianças nascidas nesse ano. O significado dos símbolos era destacado: a unção com óleo, a água, a veste branca, a luz, o éfeta e a exortação aos pais e padrinhos para educarem na fé pelo exemplo e pela prática familiar dos valores cristãos e humanos. A seguir, toda a comunidade era convidada a fazer a festa na sacristia.
A entrega do Pai Nosso era surpreendente: o Arlindo chamava as crianças do primeiro ano à volta do altar e “metia-lhes as palavras na boca” da oração que Jesus nos ensinou. A Comunhão, a Profissão de Fé e, posteriormente a Festa da Catequese em que as crianças assumiam o protagonismo na liturgia desde a encenação dos textos aos cânticos do coro infantil, radicalmente diferentes dos cânticos dos adultos, alguns compostos propositadamente para as crianças.
Quando recordo todas estas vivências inesquecíveis, sinto uma infinita gratidão pela vida do nosso irmão presbítero Arlindo. Bem hajas! O teu nome está inscrito no Livro da Vida. Descansa em paz.
Laura Marques é pediatra no Centro Materno Infantil do Norte e membro do Metanoia – Movimento Católico de Profissionais.