
“Só as ilusões deixaram de nele caber, a maturidade é robusta e ocupa muito espaço.” Foto © Maria de Jesus
A arte não nasce nos palcos, nem nas telas, nem nos livros ou nos pincéis… A arte nasce na Rua; nesse depósito de vida comum. A arte nasce onde a fonte se inspira pela paixão que brota.
Ouvi, pela vida fora, incontáveis vezes a velha história da coragem, a mítica frase “eu não era capaz”; é claro que não, sempre que o preconceito se sobrepõe ao amor, não é possível ser-se capaz. Coragem?? Coragem eu precisaria para passar pela vida sem realizar os meus desejos, nesse louco trapézio entre doses paralelas de coragem e cobardia. Quantos são os que abandonam os seus sonhos por incapacidade de aceitar que, aos olhos dos outros, envergam caminhos menores?
Não se carece de coragem quando a resposta é a entrega, a honestidade para com o que se sente. A coragem só se torna útil quando o jogo é avesso à vontade. Por isso, eu não preciso de coragem, preciso de amar, indiferente às condições desse amor.
Tenho 16 anos e estou no meu quarto. Visto o fato fluorescentemente bordado pela minha avó para que eu pudesse ir para a rua; saio. Levo a reboque o camarim andante encantado recheado de ilusões. Maquiagem, objetos de malabarismo, um gorro de bobo almofadado, imprescindível para o meu salário.
Paro na praça, pouso a mala, seguro no espelho e deixo que a beleza me invada; a rua repara na minha viagem e eu cresço até ao tamanho do brilho do meu olhar. Fico pronta.
O mundo está baço e a multidão é quente, o amor deve notar-se, porque o mundo permanece; ainda que baço, permanece atento a mim. O amor nota-se, nota-se sempre em tudo o que palpita.
Engulo sentidos pardos e sugo o encantamento de mais uma noite…. Estou cansada e alegre, a vida é um êxtase.
Devolvo cuidadosamente as ilusões ao camarim, desfaço o rosto em algodão e água de rosas, gosto de água de rosas para limpar o rosto, gosto muito. Caminho sem rosto, com o camarim a reboque e as fluorescências do vestido a sobressaírem na rua baça. Já sou metade e entrego-me ao caminho de casa.
Tenho 36 anos e estou no meu quarto; falam-me agora de curiosidades mais sensatas e faz tempo que deixaram de me perguntar onde arranjava coragem, acho que todos notaram a plenitude do amor.
Ainda visto o fato que a minha avó me bordou para atuar na rua, e também ainda levo a reboque o camarim andante com tudo o que preciso; só as ilusões deixaram de nele caber, a maturidade é robusta e ocupa muito espaço.
Ainda viajo por entre os aplausos e continuo a crescer até ao tamanho do brilho do meu olhar.

“A rua repara na minha viagem e eu cresço até ao tamanho do brilho do meu olhar.” Foto © Paderne Medieval 2019
Ana Sofia Brito é performer e artista de rua por opção, embora também mantenha a arte de palco; frequentou o Chapitô e estudou teatro físico na Moveo, em Barcelona.