Ensaio de Teologia Litúrgica

Arte e liturgia. Teoria da presença de Deus entre visível e invisível

| 15 Mar 2023

Um ensaio de teologia litúrgica apresentado como “insitigante”, destinado a suscitar espanto. Em discurso mistagógico-poético, Ecologia Poética no Labirinto da Liturgia, da autoria do padre Joaquim Félix de Carvalho, convoca também reconhecidos poetas portugueses e os artistas Bill Viola e Anish Kapoor. O autor é teólogo com especialização em liturgia, área em que se doutorou pelo Pontificio Istituto Liturgico di Sant’Anselmo (Roma), professor auxiliar na Universidade Católica Portuguesa e investigador do CITER (Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião).

Dedicando-se à renovação das artes e da arquitetura religiosa contemporânea, Joaquim Félix integra também a equipa de formação do Seminário Conciliar de Braga e colabora, no contexto de equipas multidisciplinares, com arquitetos, artistas e artesãos na edificação e qualificação de lugares litúrgicos, alguns deles reconhecidos nacional e internacionalmente. As suas últimas publicações em livro são: Capelas de Braga. Novas poéticas da espacialidade ritual (2018), Trisagia (2020), Do fundo do cálice (2022) e Livro da Deslocação (2022).

os três últimos dois quais referidos no 7MARGENS, que a seguir reproduz o texto do prefácio deste novo livro, da autoria de Teresa Bartolomei, investigadora integrada do CITER e professora convidada da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa.

 

 

Arte e liturgia. Teoria da presença de Deus entre visível e invisível

 

Joaquim Félix LivroMoldar o tempo e o espaço é um dos exercícios essenciais da civilização: calendários e agricultura, crónicas e habitação, ritmo laboral, práticas higiénicas e indumentárias relativas aos nossos corpos e aos seus consumos, são todas formas de inscrever na imanência da nossa condição corpórea a marca simbólica da intencionalidade humana. A finalização utilitária própria a este exercício civilizacional desdobra-se a nível cultural numa exigência expressiva e interpretativa que declina a necessidade (sobrevivência) em sentido (vivência e convivência): a subjetividade do ser não cabe na objetividade da coisa, abre nela e entre ela e o sujeito uma clivagem que a palavra e todo o exercício simbólico explora, interroga, configura e expressa.

Somos o nosso corpo, a sua inerência espaço-temporal – física e orgânica -, mas esta inerência é experimentada, pensada, interpretada e modelada por nós, e por isso não nos reduzimos a ela. Esta diferença intransponível acompanha-nos na nossa existência como um mistério quotidiano no qual, sabemos, se joga quem somos: o invisível do nosso não ser apenas aquilo que vemos é a sombra ontológica a que o crente dá o nome escatológico de eternidade e o não crente dá o nome filosófico de racionalidade, postulando que esta sombra está afinal toda dentro do tempo e do espaço, que não seriam transcendíveis.

A tragédia última (escatológica) da arte não crente é por isso precisamente colocar a potência de transcendência do sentido (dita pela intencionalidade) fora do ser humano: ele é simples vetor transitório de um sentido encarnado pela obra, não  afetado pela morte do sujeito – o criador e o fruidor – : o momento fundador  da transcendência manifestada pela expressão de um sentido é subjetivo (no gesto autoral e recetivo), mas a sua manifestação simbólica  inere à objetividade do seu significante (à sua inscrição espaço-temporal). A perenidade (a imaterialidade do sentido) é exterior ao sujeito que a dá à luz: por isso a arte consola, ensina, revela, mas não salva, não cumprindo (e não prometendo) aquela que é pelo contrário uma função essencial da religião.

A arte desce nas profundezas do abismo da diferença entre visível e invisível, entre a imanência e a sua sombra ontológica – o mistério da intencionalidade livre e criadora -, para resgatar o primado desta sobre aquela, para alcançar a vitória de um eu não prisioneiro da lei mortuária do espaço-tempo, a lei da vida a termo. Todavia, o sentido que a arte institui não traz de volta à terra a Eurídice do sujeito com vida. A última palavra, também para a arte, é de Ades, da morte. O poema volta sempre da noite, mas deixa sempre atrás Eurídice, o eu de que a poesia tira a própria voz, o amor à vida que o gera.

Pau

“Se a missão da arte, segundo o célebre aforismo de P. Klee, é de tornar  visível o invisível, é tornar-se revelação, a religião, pela sua parte, não explora, mas aguarda; não produz  (não é poiesis), mas acolhe; não revela, mas testemunha a revelação.” Pintura: Paul Klee, Jardins do Templo. The Metropolitan Museum of Art, NY

 

Pelo contrário, a religião não explora o mistério à procura do seu resgate, não pretende iluminar a sombra, para detetar aquilo que nela é invisível. Se a missão da arte, segundo o célebre aforismo de P. Klee, é de tornar  visível o invisível[1], é tornar-se revelação, a religião, pela sua parte, não explora, mas aguarda; não produz  (não é poiesis), mas acolhe; não revela, mas testemunha a revelação. A religião postula que a sombra ontológica que nos acompanha e assombra guarda uma potência de vida maior do que a intencionalidade do sujeito, uma potência com a qual ele pode relacionar-se, e, possivelmente, ser por ela salvo. Se na arte o sujeito quer resgatar (aquilo e aquele que passa, que tem fim), na religião espera ser resgatado. Se na arte o sujeito inventa para descobrir, na religião ele procura ser − descoberto −, recebendo as palavras e as formas que o manifestam a si mesmo como irredutível à imanência que o prende e o mata. A religião não pretende tornar visível o invisível, mas confia na ideia de o visível pertencer ao invisível, e é esta relação de pertença a compreender e a ativar que está ao centro da sua prática. Neste sentido, a fé “é certeza [das coisas] que não se veem”, diz a Carta aos Hebreus (11, 1), em pleno acordo com a interdição bíblica da representação de Deus: a intenção de dar visibilidade ao invisível pode ser artística, mas se for religiosa é idolátrica. O homem só pode estar à espera do que o invisível dá a ver de si (por meio da Palavra e da Lei, nas religiões do livro, ao que o cristianismo acrescenta os sacramentos; por meio das manifestações naturais, espirituais ou místicas nas outras religiões), disponibilizando-se para uma relação de comunhão com ele: a relação institui a visão, não vice-versa.

Nesta diferença no cumprimento de uma exigência comum – ser vetor da potência de revelação em relação à condição humana inerente à transcendência da sua elaboração como sentido – inscrevem-se as tensões, e a complementaridade entre arte e religião, entre arte e liturgia – que é a dimensão da religião em que mais direta e exemplarmente se configura a intenção partilhada com a arte de moldar simbolicamente o tempo e o espaço como beleza e a sacralidade desta intencionalidade humana.

Encontramos uma magnífica ilustração desta sinergia inquieta e fascinante, feita de mútuo espelhamento, convergência e ao mesmo tempo competição subtil, neste pequeno livro que nos guia com sensibilidade e fineza inigualáveis na exploração de uma série de constelações artísticas – poéticas e visuais – contemporâneas[2], selecionadas precisamente pela sua singular articulação com o simbolismo litúrgico Imersão, ascensão, peregrinação, conjugadas respetivamente nos elementos da água, do ar e da terra, configuram um repertório icónico especialmente pertinente, como demonstrado pelo autor, para a expressão da relação entre o visível da imanência e o invisível da livre intencionalidade humana como acolhimento, diálogo e pertença. Nas obras convocadas por Joaquim Félix de Carvalho,  que se caracterizam por isso como exemplos eloquentes de uma arte aberta à fé, mesmo quando não confessionalmente marcada e confessadamente crente, a intenção de fundo não é epifânica mas dirigida à  exposição da relação   entre a potência semântica e simbólica do sujeito ao estabelecer uma forma e um sentido (através da interrogação da experiência da imersão, da tentativa de dar corpo ao moto de elevação, da andança pelo labirinto, da escrita)  e a abertura que esta potência abre e denota, enquanto o transcende.

Violoncelo notas musicais

“E haverá nos gestos que nos representam / a unidade de uma nota de violoncelo.” Foto © Gerd Altmann / Pixabay

 

O que está em jogo nestas obras de arte, em plena harmonia com o gesto litúrgico, não será então tanto de tornar visível o invisível, algo em que se pode aventurar o místico, mas não a liturgia, quanto instaurar e expor uma relação em que o visível se experimenta como integrado no invisível, envolvido numa relação de reciprocidade: é a resposta do invisível ao apelo constituído pelo gesto artístico e ritual do homem, que a liturgia, que estas obras exploram, partilhando a intuição de que a experiência fundamental do ato religioso  não é ver Deus, mas sentir-se visto por Ele, numa dinâmica relacional que colma por instantes a clivagem historicamente intransponível entre matéria e transcendência, tempo-espaço e eternidade.

No ato litúrgico, Deus torna-se presente para o crente não porque se faça visível para ele, mas porque o põe em condição de sentir-se visto, acolhido, por Ele. É esta a forma litúrgica da presença de Deus formulada maravilhosamente por aquele grande poeta ainda integralmente cristão na perda da fé, que é Ruy Belo, amplamente citado por Joaquim Félix de Carvalho no seu ensaio:

Somos seres olhados
Quando os nossos braços ensaiarem um gesto
fora do dia-a-dia ou não seguirem
a marca deixada pelas rodas dos carros
ao longo da vereda marginada de choupos
na manhã inocente ou na complexa tarde
repetiremos para nós próprios
que somos seres olhados

E haverá nos gestos que nos representam
a unidade de uma nota de violoncelo[3]

Os gestos litúrgicos, e alguns gestos estéticos e artísticos com eles singularmente afins, gestos − fora do dia-a-dia −, que não seguem − a marca−  da utilidade, da funcionalidade puramente material, − representam − o homem deixando emergir dele − a unidade − inefável e invisível expressa pela música (que nada visualiza e antes expõe a nossa cegueira): experiência de beleza que nos transmite a confiança em sermos parte de uma harmonia maior do que nós, inerente ao ser das coisas no seu transcender-se numa promessa de eternidade, verdade, amor e bondade que alguns de nós chamam de Deus.

 

[1] “A arte não reproduz o visível, mas torna visível (I)”. Assim Paul Klee abre um texto programático (Credo do criador, 1920), que será extraordinariamente influente na teoria estética e na produção artística sucessiva: “No passado, representava-se coisas que podiam ser vistas na terra, que se gostava de ver ou que se gostaria de ter visto. Agora pretende-se tornar aparente a realidade das coisas visíveis, dando expressão à crença de que o visível é apenas um exemplo isolado em relação ao mundo como um todo, e as verdades latentes são em maior número do que as manifestas.” (Ibidem, V)
[2] Com a exceção do exemplo da reproposta medieval da figura mítica do labirinto.
[3] De: Ruy Belo, “Teoria da presença de Deus”. In: Aquele Grande Rio Eufrates. Assírio e Alvim, Lisboa 1961| 1972 | 2018, p. 98.

 

Teresa Bartolomei é doutorada em Teoria da Literatura pela Universidade de Lisboa, investigadora do Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião da Universidade Católica Portuguesa e professora convidada na Faculdade de Teologia da UCP.

 

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