
Vigília à porta do liceu de Tamalpais, em memória do massacre de Parkland, em finais de maio. Foto © Fabrice Florin | Wikimedia Commons
Mais um massacre provocado por um tiroteio numa escola básica de uma pequena localidade do Texas (com a morte de dezanove crianças e duas professoras) veio relançar, mais uma vez, a discussão sobre o controlo da venda e posse de armas nos Estados Unidos, onde continua a prevalecer a tese de que essa posse é um direito fundamental de cada cidadão, essencial para a sua defesa. Uma prevalência a que não é alheia a pressão interesseira do lóbi dos vendedores de armas.
Como também noutras ocasiões, há quem diga que o verdadeiro problema não reside na posse das armas, mas nas pessoas que as utilizam e que, mais do que a questão do acesso às armas, há que analisar e enfrentar aquilo que leva jovens e adultos a provocar estes trágicos massacres. É verdade que a questão não reside apenas no acesso às armas e que por detrás destas atitudes há fenómenos de crise de valores, de doença mental, de desestruturação familiar e de desinserção social que devem ser tidos em conta para enfrentar o problema na sua raiz. Mas a facilidade do acesso às armas, por si só, constitui fator determinante para a ocorrência destes tiroteios. Todos esses problemas poderiam originar desfechos menos trágicos do que estes, poderiam não provocar mortes se não fosse essa facilidade de acesso.
Quando se discute esta questão da maior ou menor facilidade de acesso à posse de armas, e do mais ou menos restritivo regime legal desse acesso, não posso deixar de recordar vários casos com que lidei ao longo da minha carreira de juiz. Casos em que só o acesso a uma arma poderá explicar o seu desfecho trágico de perda de vida humanas. Nem a gravidade do conflito em causa, nem a personalidade do agente do crime o poderiam explicar. Recordo bem o caso de um homicídio originado por uma banal discussão de trânsito em que o homicida, profundamente arrependido logo após a prática do crime, aceitou sem qualquer contestação a sua prisão. Se não fosse o acesso a uma arma, dessa discussão não teria resultado mais do que um par de bofetadas sem graves consequências. Nem a natureza do conflito, nem a personalidade dos intervenientes conduziriam a tão trágico desfecho. Como este, outros casos ocorrem com frequência.
Tive ocasião de partilhar esta minha modesta experiência numa audição parlamentar em que, em representação da Comissão Nacional Justiça e Paz, defendi alterações legislativas num sentido de maiores restrições à posse de armas, que transpunham normas europeias e vieram a ser aprovadas. Estava sozinho diante de muitos e variados grupos de pressão que se opunham a essas maiores restrições. Devo dizer, em abono da verdade, que nenhum desses grupos advogava um regime semelhante ao dos Estados Unidos, mas, mesmo assim, algumas pessoas desses grupos não afastavam a ideia de que o maior acesso às armas é um fator de segurança.
Ora, verifica-se precisamente o contrário. É o que revela a experiência dos Estados Unidos e de outros países (o México, a Venezuela e o Brasil) que seguem regimes igualmente permissivos: a proliferação de armas não contribui para uma maior segurança, pelo contrário. A insegurança de qualquer desses países contrasta com a situação que experimentamos em Portugal, e na Europa em geral, com regimes mais restritivos.
Invocam os partidários do regime norte-americano as necessidades de defesa dos cidadãos. As armas seriam um instrumento necessário para garantir esse legítimo direito de defesa. Mas elas tanto podem ser usadas para defesa como para a agressão. Nada pode garantir que não o sejam. E também podem facilitar o chamado “excesso de legítima defesa”, uma defesa desproporcionada, que não justifica o uso de instrumentos que causam a morte do agressor quando não está em risco a vida da pessoa agredida e outros meios poderiam ser suficientes para repelir a agressão.
Na linha desta tese de necessidade de armas como meio de defesa, até há quem argumente que massacres como o desta escola do Texas poderiam ser evitados se os professores possuíssem armas para se defenderem. Uma tese absurda, que levaria a um círculo vicioso, a uma espiral imparável de difusão de mais e mais armas.
Em causa está uma perspetiva de absolutização da liberdade individual e da propriedade privada. Acima desses valores está, porém o da vida humana. É a proteção da vida humana que justifica restrições à posse de armas, pelo perigo que representam. Há que dar prevalência a essa proteção de uma forma global e coerente, igualmente vigorosa, em todas as fases da vida, desde o seu início ao seu fim, e perante todas as ameaças e ataques que a atingem.
Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz