
O cantor Zeca Afonso, uma das vozes de Abril. Foto © Associação José Afonso
A canção apresenta-se neste livro como um objeto único para reconstituir a história cultural de uma era, como nos avisa a mensagem inscrita na contracapa. E essa época está bem definida no subtítulo deste Silêncio Aflito: “A sociedade portuguesa através da música popular (dos anos 40 aos anos 70)” — e assim está também situado o regime ditatorial do Estado Novo que oprimiu Portugal até 1974 e, à época, as então colónias.
A viagem proposta por Luís Trindade, professor universitário de História Contemporânea na Faculdade de Letras de Coimbra, não é meramente académica, é antes um objeto fascinante: através da música, das canções populares, o autor percorre os dias de chumbo de uma pobreza e atavismo tantas vezes celebrados pelo regime, para procurar descobrir quando a sociedade se apropria de canções e discos, “dando-lhes um sentido” (p.17).
É um livro de História, este, mas com a vivacidade de uma melodia (p. 16), canta-se, dança-se e “as canções formam constelações, mas só o conseguimos perceber acompanhando-as na sua circulação” (p.25), e é assim que o autor estrutura a obra: cada capítulo abre com uma canção específica, representando “alguns dos fenómenos de maior popularidade no período”. A partir dessa canção, Luís Trindade procura reconstituir as “condições sociais, comunicacionais e políticas em que as canções foram escutadas e puderam assim fazer sentido naquele contexto histórico”.
Tome nota desta breve banda sonora: Vocês sabem lá, por Maria de Fátima Bravo (1958), no capítulo que é dedicado à “música radiofónica”; a inevitável Desfolhada Portuguesa, de Simone de Oliveira (1969), com letra de Ary dos Santos, que abre o capítulo das “canções para a Eurovisão”; A Lenda de El-Rei D. Sebastião, pelo Quarteto 1111 (1968), que antecipa, 12 anos antes de Ar de Rock de Rui Veloso, o capítulo sobre “o rock em Portugal”; e Venham mais cinco, por José Afonso (1973), para a digressão sobre “a nova canção portuguesa” – e o autor reconhece que, para abrir este capítulo, podia ter escolhido Grândola, Vila Morena, a canção de Zeca que foi a senha da irreversibilidade da Revolução do 25 de Abril.
Não antecipemos remissões, citações e ilustrações, de que tão bem se serve Luís Trindade, mas como se explica são estas canções que permitem uma viagem inesperada pelo Portugal do pós-guerra, nos anos 60 e no período final do Estado Novo, com paragens longas pela economia da mulher moderna ou a popularização da música ligeira, na revisitação de Hollywood e na construção de uma história cultural do amor (e, neste caminho, a importância da criação e difusão da RTP, a partir de 1957), pela explosão dos festivais da canção e os choques futuros das culturas juvenis, com os seus concursos do ié-ié ou a folk, a música tradicional, a ajudar na renovação musical, nos finais dos anos 1960 e na década de 1970.
Este Silêncio Aflito é, já se disse, um retrato improvável de um país parado, sofrido e pobre, mas que num registo quase conservador vai encontrando fórmulas para escapar a interditos morais, para antecipar tendências sociais, revoluções nos costumes ou revoltas políticas. Talvez por isto, Luís Trindade tenha ido buscar o título para o seu livro a José Afonso em Que amor não me engana (do álbum Venham mais cinco): “E as vozes embarcam/ num silêncio aflito/ quanto mais se apartam/ mais se ouve o seu grito.”
Silêncio Aflito: A sociedade portuguesa através da música popular (dos anos 40 aos anos 70)
Autor: Luís Trindade
Edição: Tinta-da-China, 2022
496 páginas