Olhar de teóloga
O 7MARGENS inicia, com esta crónica, um espaço de colaboração regular de Cristina Inogés Sanz, teóloga espanhola que integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Teóloga pela Faculdade de Teologia Protestante de Madrid, Cristina Inogés colaborou já com a Faculdade de Teologia de Gotinga (Gottingen), Alemanha, e actualmente é colaboradora regular de várias publicações, entre as quais a Vida Nueva, além de autora de vários livros, entre os quais o recente Beguinas, Memoria Herida (“Beguinas, memória ferida”), sobre a experiência medieval comunitária e autónoma das beguinas.
As crónicas que o 7MARGENS publicará são as da Vida Nueva, que aceitou esta colaboração. À autora e ao director da revista, José Beltrán, agradecemos a deferência.
Escutar e fazer-se escutar
O verbo escutar parece ter despertado após uma intensa letargia durante a qual foi muito facilmente confundido com o verbo ouvir. Não têm nada a ver um com o outro.
Francisco ofereceu-nos um belíssimo texto para o Dia Mundial das Comunicações Sociais intitulado Escutar com os ouvidos do coração.
Escrito nesse estilo tão próximo e pessoal deste Papa e não lhe faltando profundidade, convida-nos a uma escuta que vai muito além do facto de recebermos palavras no nosso pavilhão auditivo, para irmos mais fundo naquilo que escutamos e, sobretudo, à profundidade daquele que nos fala, confiando, e sem violentar a sua intimidade.
Francisco diz no texto que também na Igreja há uma grande necessidade de escutar e de nos escutarmos. Tem toda a razão e, embora haja muitas pessoas dispostas a fazê-lo e com boa preparação para o fazer (porque a escuta também precisa de preparação), por vezes dá a impressão de que mais do que Igreja somos somente instituição, o que não é a mesma coisa. Na Igreja, a escuta tem de seguir o ritmo da compaixão, que é uma mistura sólida, nas proporções adequadas, de empatia e compreensão para com aqueles que sofrem e padecem, e que nos permite chegar a sentir o que essa pessoa sente.
A preparação para a escuta não é um assunto trivial e requer o treino do ouvido, do coração, dos gestos do corpo e do olhar, porque tudo faz parte do conjunto de elementos necessários para que a pessoa que está a falar se sinta escutada. Não é aceitável, mesmo que se esteja a prestar toda a atenção, que quem escuta esteja a olhar para o tecto, ou para o infinito, ou tenha os braços cruzados, enquanto a outra pessoa desafoga o seu coração. Muito menos que esteja à procura de uma citação bíblica adequada para a ocasião. O contacto visual na escuta é de importância vital.
Coincidindo – sem que fosse essa a intenção – com a publicação da mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, surgiu a notícia da iniciativa “#OutinChurch. Por uma Igreja sem medo”, na qual 125 pessoas pertencentes à Igreja Católica Alemã, decidiram manifestar publicamente a sua orientação sexual.
Entre eles há professores de religião, sacerdotes, funcionários de diversas entidades diocesanas… Alguns poderão dizer que está na moda sair do armário; contudo, este gesto é extremamente corajoso porque, na Igreja Católica, sair do armário ainda é um gesto que é visto mais como um desafio do que como uma profecia.
Em muitas ocasiões, um gesto como o realizado por estes católicos alemães é a única maneira de fazer-se escutar, de dizer à Igreja que estão aí, que existem.
É certo, e deve ser reconhecido, que algumas vozes dentro da Igreja já compreendem que devem ser adoptadas medidas que incluam, para não continuar a excluir por sistema. Assim, podemos ler as declarações do cardeal Hollerich em La Croix (20-1-22), onde abertamente e, para além de outros assuntos interessantíssimos, diz: “Seria bom que os padres homossexuais, que são muitos, falassem com o seu bispo sem que este os condene”.
A Igreja não é um clube. Um clube tem certas normas. Se as aceitas tudo corre bem, se não as aceitas já sabes onde fica a porta de saída. Sim, a Igreja também tem as suas normas; no entanto, essas normas contidas no Código de Direito Canónico devem ser lidas à luz do Evangelho, que é ou deveria ser a nossa máxima lei. É verdade que o Código de Direito Canónico reflecte e legisla a teologia do momento, e por isso, precisamente por isso, algo tem que ser feito para que não haja tanto contraste.
Há um texto no Evangelho de João que diz: “Também tenho outras ovelhas que não pertencem a este rebanho; também essas devo conduzir: Escutarão a minha voz e haverá um só rebanho sob um só Pastor” (10,16). É um texto maravilhoso que mostra uma força regeneradora, da qual está muito necessitada a nova evangelização. Não esqueçamos que o contexto destas palavras é onde Jesus ensina que Ele é o Bom Pastor. Está a mostrar aos discípulos (tenhamos presente que no evangelho de João só há discípulos, não há apóstolos e discípulos) como deve ser o pastor. Está a dizer-lhes como devem ser como pastores.
A mensagem de Francisco termina dizendo que na acção pastoral, a obra mais importante é o “apostolado do ouvido”. E acrescenta no penúltimo parágrafo: Começou há pouco um processo sinodal. Oremos para que seja uma grande oportunidade de escuta recíproca. A comunhão não é o resultado de estratégias e programas, antes se edifica na escuta recíproca entre irmãos e irmãs. Como num coro, a unidade não requer uniformidade, monotonia, mas sim pluralidade e variedade de vozes, polifonia. Ao mesmo tempo, cada voz do coro canta escutando as outras vozes e em relação à harmonia do conjunto. Esta harmonia foi idealizada pelo compositor, mas a sua realização depende da sinfonia de todas e de cada uma das vozes.
Ámen.
Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Tradução de Júlio Martin.