
“A luz da estrela não foi apenas uma iluminação em um momento histórico particular, mas continua a brilhar e a mudar a face da história.” Foto: Cristãos no Médio Oriente. © ACN Portugal
No contexto da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos 2022 [entre 18 e 25 de janeiro] prestamos tributo a um homem bom, um fiel seguidor de Cristo e um cristão verdadeiramente ecuménico e aberto ao diálogo inter-religioso. Um cristão também com profundo sentido de humor e de alegria, que é sempre um sinal de uma boa espiritualidade. Refiro-me ao arcebispo anglicano Desmond Tutu, prémio Nobel da Paz em 1984 e recentemente falecido, a 26 de dezembro passado. A sua vida, a sua luta, a sua fé em Jesus Cristo é exemplar para nós hoje. É uma estrela boa que Deus coloca no nosso caminhar de vida. A fé do arcebispo Tutu foi forjada num contexto pessoal e eclesial de grande exigência e provação provocada pelo opressor sistema racista na Africa do Sul conhecido como apartheid.
Enquanto cristãos, não podemos esquecer que o sistema do apartheid de segregação racial foi também promovido por Igrejas cristãs que procuraram justificação bíblica e teológica para o racismo. A Igreja Reformada Holandesa (país de onde provinham os primeiros colonizadores da Africa Austral) chegou a afirmar o apartheid como “uma legítima política eclesial” desenvolvendo uma teologia do apartheid sustentada no relato da divisão do género humano em Babel e referindo que a unidade pela qual Jesus orou ao Pai não requer a unidade numa instituição. Criaram-se então e convenientemente Igrejas separadas; igrejas para brancos, igrejas para negros e igrejas para mestiços.
Deste modo as igrejas e os cristãos que ao longo de décadas lutaram pelo fim do apartheid na Africa do Sul, não só tiveram que lutar contra o Estado opressor, como tiveram também a árdua tarefa de desmontar os argumentos bíblicos e teológicos que justificavam a descriminação racial. Quase sempre a luta pela modificação das estruturas políticas e sociais injustas é acompanhada também, pela necessidade de libertar as Igrejas e as religiões, de sistemas, de ideologias e práticas internas, que não só as afastam de Deus como ajudam ainda a sustentar sistemas opressores. Verdadeiramente as Igrejas devem reexaminar-se continuamente para manter a sua pureza de doutrina e prática.
Em 1996 o arcebispo Tutu liderou a Comissão de Reconciliação e Verdade criada após o fim do apartheid para promover de forma pacífica a reconciliação entre as vítimas e os opressores. O conceito básico que norteava a Comissão era de uma justiça restauradora e não criminal. Uma justiça social baseada na necessidade de ouvir, compensar e dignificar as vítimas, mas também ouvir os acusados, facilitando a sua posterior integração na sociedade.
A prática e a vivência da reconciliação têm sido uma das áreas determinantes do movimento ecuménico. Para o ecumenismo, e como muito bem sublinhou a II Assembleia Ecuménica Europeia, em Graz [Áustria, 1997], a “reconciliação é um dom de Deus e uma fonte de vida nova”. Partilhamos uma mesma confissão de fé de que “toda a reconciliação neste mundo está fundamentada na reconciliação que Cristo trouxe às relações entre Deus e o mundo”. Assim, para nós cristãos das diversas Igrejas, a reconciliação traduz-se na reconciliação da pessoa com Deus, com os outros, consigo própria e com a Criação. Os desafios que enfrentamos a nível global só poderão ser superados se os cristãos estiverem unidos e promoverem essa unidade e reconciliação nas diferentes áreas da sociedade. Unidade e reconciliação caminham a par e uma não prescinde da outra.
Esse foi o propósito de vida não só do arcebispo Desmond Tutu mas também daquilo que poderíamos chamar como a “constelação de estrelas ecuménicas” das diferentes tradições cristãs cujo legado e vida continua hoje a inspirar-nos enquanto Igrejas e cristãos. Assim é com homens e mulheres como Desmond Tutu, Martin Luther King, Charles de Foucauld, Dietrich Bonhoeffer, Madre Teresa de Calcutá, Chiara Lubich, o irmão Roger de Taizé, o Papa Francisco, entre muitos outros e outras.
Todos eles e elas são estrelas boas cuja luz continua a brilhar e que nos conduzem não para si mesmas, mas orientam-nos para o encontro e vivência com Jesus Cristo. Neles está Cristo e por eles também nós vamos a Cristo. Para cada época da história e do caminhar da humanidade, Deus, na sua bondade, suscita sempre estrelas boas que iluminam o nosso caminhar. A este propósito, os cristãos do Médio Oriente que prepararam a liturgia desta Semana de Oração referiam: “A luz da estrela não foi apenas uma iluminação em um momento histórico particular, mas continua a brilhar e a mudar a face da história.” Ou seja, a narrativa bíblica dos Magos e da estrela como que se atualiza, ganhando novos intérpretes, novas estrelas e propondo novos caminhos.
É desta fidelidade, de um Deus que providencia sempre estrelas para nos guiar, que nasce a nossa esperança e confiança num contexto tão sofrido como aquele que estamos a viver atualmente. O exercício espiritual que se nos coloca é o de não desistir de olhar o céu na busca de orientação. Quando muitos caminham já desesperançados, vergados pela cruz da vida e incapazes de olhar para cima, deveremos saber propor a arte e a sensibilidade da contemplação, da espera e de nos deixar surpreender e tocar pelo inusitado de Deus. Assim foi com os Magos que ousaram não só olhar para cima como colocar-se a caminho não se deixando desviar por falsas estrelas e sinais. A adoração que nos é pedida é a adoração somente ao menino, que é Deus encarnado, Jesus Cristo. Temos que estar atentos às falsas estrelas e não nos deixarmos seduzir por elas. Deus não nos pede ouro, incenso ou mirra, mas antes a prenda do nosso compromisso e fidelidade ao seu caminho, verdade e vida.
Dizem-nos os astrónomos que estudam as maravilhas do Universo que quando olhamos para as estrelas no céu estamos a olhar para o seu passado. Mesmo depois da sua morte, a luz das estrelas e o seu brilho continuam durante muito tempo a poder ser vistas e a guiar o nosso caminhar. Assim é também com o legado que muitos homens e mulheres nos deixam pela sua santidade de vida cristã. É um legado e uma luz que perdura após a sua partida para Deus. São caminhos abertos à espera que os possamos percorrer dadas as verdades e princípios intemporais que os marcam e que dizem sempre respeito a cada geração.
Como nos é referido pelos nossos irmãos do Médio Oriente, a “comunhão que compartilhamos na nossa oração deve inspirar-nos a voltar para as nossas vidas, as nossas Igrejas e o nosso mundo através de novos caminhos”, tal como os Magos fizeram avisados por Deus.
Somos chamados pois, agora e uma vez mais, a percorrer novos caminhos ecuménicos e de reconciliação na nossa realidade eclesial e social em Portugal. Não para nossa satisfação própria, antes para que a Epifania de nosso Senhor Jesus Cristo continue a acontecer para as gentes do nosso tempo e renasça a luz da esperança de que tanto necessitamos.
Termino com as palavras vindas do Médio Oriente: “Um novo começo é sempre possível quando estamos dispostos e abertos à obra do Espírito. Como Igrejas, olhamos para o passado e encontramos iluminação, e olhamos para o futuro em busca de novos caminhos para que possamos continuar a viver o brilho da luz do Evangelho com fervor renovado e acolher uns aos outros como Cristo nos acolheu para glória de Deus.”
Jorge Pina Cabral é bispo da Igreja Lusitana (Comunhão Anglicana)