
Em 25 de fevereiro de 2022, em Kiev, na Ucrânia, mulher olha para a cratera deixada por uma explosão em frente a um prédio de apartamentos que ficou fortemente danificado durante os ataques militares russos em curso. Foto © UNICEF
Nas margens da filosofia (XLIV)
Pegue apenas no que é mais importante. Pegue nas cartas.
Pegue apenas no que puder carregar.
Pegue nos ícones e nos bordados, pegue na prata,
pegue no crucifixo de madeira e nas réplicas douradas.
Pegue num pouco de pão, nos legumes do jardim, e depois vá embora.
Nunca mais voltaremos.
Nunca mais veremos a nossa cidade.
(Serhiy Zhadan)
O excerto que acima citamos é de Serhiy Viktorovych Zhadan, poeta, romancista e ensaísta ucraniano. O seu pano de fundo é a guerra que hoje vivemos. Nele não se referem especificamente as mulheres mas acredito que, ao escrevê-lo, as lembrou. Como espectadores que somos do horror a que diariamente assistimos nos noticiários televisivos, temo-las bem presentes. Enquanto os homens nos falam dos combates travados, das vitórias e derrotas de um exército que constantemente nos espanta pela sua coragem e resiliência, é pelas mulheres que nos apercebemos do drama que é abandonar uma casa, de escolher o essencial para levar em poucas malas, de consolar as crianças, encorajar os velhos e atender aos animais de companhia, um testemunho de amizade tocante e inesperado, a mostrar-nos que a solidariedade também se estende aos não humanos. As mulheres ucranianas exemplificam concretamente as chamadas éticas do cuidado, um tema central nas filosofias feministas que aqui relembramos em sua homenagem.
Contrastando com as éticas da justiça com as quais muitas vezes dialogam, as éticas do cuidado concedem uma particular atenção aos valores contidos no relacionamento interpessoal, tomam como referência ética a relação mãe/filho, baseada na gratuidade e no amor e procuram no universo feminino os elementos determinantes para uma relação de cuidado, aquela que considera o outro como objecto primeiro das nossas preocupações. Porque cuidar implica dar atenção a alguém ou a algo e, consequentemente, exige uma vivência face a face, sujeito a sujeito. Não é uma relação de domínio mas de interacção, de companhia e de afecto. Apela para a convivialidade, para a ternura e para a compaixão. Exige solidariedade e responsabilidade, atitudes que se concretizam numa primeira fase entre humanos mas que posteriormente se podem estender a todos os seres, vivos e não vivos.
As mulheres têm desempenhado um papel preponderante no cuidado com os outros. Não quer dizer que esta atitude lhes seja exclusiva. Mas a vida familiar tal como ainda está organizada, faz delas responsáveis mais próximas pelos filhos, pelos doentes da família, pelos idosos, pela casa, pelos animais domésticos. Todas essas tarefas comezinhas que a sociedade exige às mulheres e que elas inconscientemente interiorizam foram avaliadas positivamente por certas investigadoras que, inseridas no chamado “feminismo cultural”, enfatizam a diferença e defendem uma identidade feminina construída a partir da especificidade das tarefas, obrigações, gestos e gostos das mulheres.
Sara Ruddick é uma filósofa contemporânea que se interessou pelas Éticas do cuidado. Na sua obra Maternal Thinking. Towards a Politics of Peace analisou as potencialidades do pensamento maternal, considerando-o não só próprio das mães mas de todas as pessoas (incluindo homens) que cuidam de crianças, de velhos, de doentes ou de outros indivíduos que por uma qualquer razão estão sob a sua dependência. Defensora do perspectivismo, sustenta que o pensamento é sempre situado, pois pensamos no interior de uma prática sendo a partir desta que o podemos caracterizar. Assim, se o pensamento científico tem determinadas exigências e o filosófico tem outras, o mesmo acontece com os pensamentos que ocorrem quando pintamos ou quando escrevemos um poema. Os critérios de verdade, de evidência e de crença variam consoante as práticas e legitimam-se em função delas. À pergunta de haver ou não um pensamento próprio que se manifesta e consolida nas relações de cuidado, Ruddick responde de um modo afirmativo. E designa esse pensamento como “pensamento maternal” dado que ele se revela plenamente na relação que se estabelece entre mães e filhos, nomeadamente na prática de tomar conta de crianças e na consequente vivência de estados contraditórios que nela ocorrem, tais como o encantamento e a exasperação, o amor e o ódio, a ternura e a violência.
Analisando o título do livro de Rudick verificamos que esta obra também se interessa pelas virtualidades políticas do pensamento maternal, orientando-o para uma política de pacificação. Para a filósofa, o cuidado que começou por se circunscrever ao domínio privado, pode e deve expandir-se para o domínio público, contribuindo para a construção de um mundo mais harmonioso. E assim, a última parte da obra Maternal Thinking é dedicada à causa da paz e ao papel que as mulheres podem nela desempenhar. Os valores e as categorias mentais que enformam o pensamento maternal colocam-se como critérios referenciais de uma sociedade que deveria estar aberta a outros valores, sendo um deles o valor da paz. E na defesa que empreende do pacifismo, Ruddick destaca nesta sua obra três tópicos, todos eles bem conhecidos de mães e educadoras que frequentemente os usam como estratégia. São eles:
– Evitar sempre que possível os conflitos. O contraste entre o pensamento maternal e as práticas violentas como a guerra, é evidente. As mães lutam para preservar a vida e o bem-estar dos filhos. A guerra sacrifica esses mesmos filhos em prol do bem-estar de uma Nação ou de um Estado. O pensamento maternal, concreto e situado, opõe-se ao pensamento guerreiro e militarista que é abstracto e simplificador. Os ideais genéricos podem dar azo a acções eticamente condenáveis em que “o outro”, na sua irredutível alteridade, é considerado um mero número.
– Lutar quando é preciso, mas de um modo não violento; a violência é entendida como factor destrutivo para o adversário, sem que a sua utilização leve a efeitos positivos. A guerra põe em causa aquilo que para a mulher é essencial – o corpo. No pensamento maternal o nascimento tem privilégio sobre a morte. Na guerra, o corpo é encarado como um alvo que se mata, fere e mutila.
– Usar a reconciliação entre os oponentes, tudo fazendo para manter uma paz livre de injustiças. Os ensinamentos colhidos no estudo do pensamento maternal surgem como alternativa ao modo actual de resolver os conflitos internacionais. Ao uso da força, Ruddick opõe a valorização das concessões mútuas.
O livro de Ruddick, escrito nos anos oitenta do século passado, debruça-se sobre um caso muito particular que levou à construção de redes de solidariedade em tempos de guerra – o papel desempenhado pelas mães e avós argentinas na procura dos desaparecidos durante a ditadura militar. As manifestações que realizaram com velas, fotos, lenços brancos bordados, constituíram o melhor protesto contra os males da guerra. Foi em nome do amor que dedicaram aos seus filhos e netos que essas mulheres se revoltaram e protestaram contra aqueles que o ignoraram, pondo em causa, desprezando e anulando o cuidado vital para com os outros. Os grupos de “madres” e “abuelas” que se juntavam (e que ainda hoje se juntam aos sábados) na Plaza de Mayo denunciavam o ideal de maternidade, posto em causa pela guerra, personificando a resistência feminina, não só porque as participantes eram mulheres, mas porque o seu objectivo era denunciar uma agressão cometida às tarefas femininas do cuidado.
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As avós e mães ucranianas que hoje passam nos nossos telejornais, com as suas malas, embrulhos e animais de estimação, recolhidos à pressa, são o testemunho vivo da coragem feminina, tão importante para a salvação do país quanto a resposta dos homens que o defendem pelas armas. Daí a nossa homenagem a todas elas, juntamente com os votos de um regresso a casa tão breve quanto possível.
Maria Luísa Ribeiro Ferreira é professora catedrática de Filosofia da Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa.