O que se passou no dia 6, com o assalto planeado ou pelo menos induzido ao Congresso dos Estados Unidos, do ponto de vista da “invocação do nome de Deus” e da instrumentalização da fé para uma missão definida pelo ainda atual ocupante da Casa Branca? Uma análise do 7MARGENS ao acontecimento e às suas consequências no interior das igrejas cristãs nos Estados Unidos e na sua relação com a sociedade. A primeira parte deste trabalho pode ser lida aqui.

Assalto ao Capitólio no dia 6, com uma faixa usada pelos manifestantes a dizer “Jesus 2020”: vários cristãos preferiram apoiar ou calar-se perante Trump, pelas vantagens que receberam ou pela concordância em matérias como o aborto. Foto © Hamil Harris/Religion Unplugged, cedida pelo editor ao 7MARGENS.
A “Marcha para Salvar a América”, do passado dia 6, foi aquecida pela instigação do ainda Presidente dos Estados Unidos a ir para o Capitólio “lutar” e impedir a consumação daquilo que entendia ser um roubo do seu segundo mandato. A iniciativa resultou em violência e destruição sem precedentes.
Entre as dezenas de milhares de apoiantes nacionalistas que se congregaram viu-se de tudo. Grupos radicais, extremistas, supremacistas, anti-Black Lives Matter, mas também muita gente conservadora moderada que acredita piamente no ainda Presidente. Na hora de cercar o Capitólio, para fazer o Congresso dobrar-se às pretensões de Trump, houve quem se inspirasse no cerco de Jericó, relatado no Antigo Testamento, houve quem invocasse a intervenção de Cristo para salvar a nação e houve quem rezasse o terço para que se operasse o milagre do reconhecimento da vitória de Trump.
Não é, ainda, de todo claro quem são as centenas de “guerreiros” – assim lhes chamou o Presidente e eles assumiram o papel – que, arrombando portas, subindo paredes e recorrendo a escadas que ali oportunamente apareceram, afrontaram o frágil dispositivo de segurança que estava montado e irromperam pelo Capitólio dentro. A verdade é que, para além de tudo o que se passou, cinco pessoas perderam a vida e várias dezenas ficaram feridas.
Perante a violência real e simbólica das imagens do que sucedeu – a confiança e arrogância dos invasores era tal que eles próprios foram fazendo a cobertura, alguns em direto – praticamente todos repudiaram a violência. Os responsáveis religiosos de diferentes confissões cristãs apelaram à oração dos fiéis, e, em cima dos acontecimentos, vários foram mais longe, exigindo a Trump que desmobilizasse os seus apoiantes.
A posição assumida ainda no dia 6 pelo presidente da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos, o arcebispo José H. Gomez, é cautelosa, exprimindo as profundas divisões que nesta matéria trespassam o episcopado do país: “Junto-me – escreveu ele em comunicado – a todas as pessoas de boa vontade na condenação da violência de hoje, no Capitólio. Não é isto que somos enquanto americanos.”
Dizendo rezar por quem sofreu e teve de lidar com esta invasão, o arcebispo Gomez acrescenta: “A transição pacífica de poder é uma marca distintiva desta grande nação. Neste momento de perturbação, temos de comprometer-nos com os valores e os princípios da nossa democracia e unir-nos como nação una em Deus.”
A cumplicidade de setores católicos e o que farão agora as igrejas?

Um cartaz no assalto ao Capitólio dos EUA: “Mantenham-se firmes, patriotas. Deus vence.” Foto reproduzida do Twitter pelo Religion Unplugged
Os setores religiosos mais fundamentalistas e seguidores de Trump procuraram enfatizar outros aspetos, sugerindo ou mesmo afirmando, ainda que sem evidências, que poderão ter sido militantes antifascistas (‘antifas’) disfarçados que se infiltraram no meio dos invasores do Congresso. “Desobedecer e agredir a polícia é pecado, quer ele seja praticado pelo movimento Antifa quer por republicanos furiosos”, escreveu no Twitter Robert Jeffress, pastor sénior da Primeira Igreja Batista de Dallas, citado no Religion News Service.
“A violação armada da segurança do Capitólio por trás de uma bandeira confederada é anarquia antiamericana, traição criminosa e terrorismo doméstico. O Presidente Trump deve dizer claramente aos seus partidários ‘Perdemos. Agora vão para casa’”, escreveu, por sua vez, o pastor Rick Warren, da MegaChurch da Califórnia.
No campo católico, destacam-se as influentes páginas “trumpistas” como Church Militant, que considerou, no Twitter o que se passou no Capitólio como “um ato de patriotas americanos”, ou o LifeSiteNews, de extrema-direita, que disse serem os participantes da Marcha “pessoas que amam a Deus e amam seu país”. O mesmo se poderá dizer da rede de televisão católica EWTN (Eternal Word Television Network).
Em registo bem diferente, posicionou-se a Pax Christi – EUA, ao defender que o Presidente Trump e seus apoiantes “devem ser responsabilizados pelas ações” no Congresso. Os eventos que o mundo testemunhou são, para o diretor executivo da organização, Johnny Zokovitch, “o resultado da demagogia de um homem, o Presidente Trump, e do fracasso de todos aqueles – políticos, média, família e outros – que desculparam, ignoraram, dispensaram ou encorajaram a retórica do ódio e da divisão que definiu o mandato deste Presidente”.
Vai no mesmo sentido a posição do jornal National Catholic Reporter, ao defender, em editorial já citado na primeira parte deste texto ser imperioso que os católicos “confessem a sua cumplicidade no golpe falhado” do Congresso, pela força que deram ao Presidente Trump, a começar pela Conferência Episcopal.
Perante um Presidente que, em lugar de unir, dividiu a sociedade, fechou as portas aos imigrantes, propagou a mentira, pôs em causa a democracia e acicatou a violência, várias igrejas preferiram apoiá-lo ou calar-se, pelas vantagens que receberam ou pela concordância em matérias como o aborto. Como vão agora inserir-se no novo quadro político, super-polarizado? Como irão participar na criação de um clima de confiança, de inclusão e de unidade?