
Pintura de Cristo e a Samaritana da autoria de Paolo Veronese: Jesus é a “é a fonte divina da mais pura e fresca das águas”. Foto © Wikimedia Commons
A água é um dos compostos químicos mais importantes. Relativamente simples sob o ponto de vista estrutural, H2O é muitas vezes tratada como “a molécula mágica”, com tudo o que já dela se conhece mas também com o muito que sobre ela ainda há a saber. A água continua a ser um dos mais difíceis produtos de encontrar em estado puro na natureza; quase apetece dizer que, estando em todo o lado, não está em lado nenhum. Sendo essencial à existência da vida física, tem também animado ao longo da existência humana os mais diversos discursos no plano do simbólico, na literatura, na filosofia e noutros tantos campos do saber humano.
Chegados mais uma vez ao período do ano em que os cristãos centram o seu olhar na cruz do Gólgota, ouvimos extasiados um dos mais excruciantes brados de Jesus naquele momento de total despojamento: “Tenho sede!” (João 19:28). Resultado do macabro engenho humano, o método da crucifixão tinha esse imenso “mérito” de infligir a morte, com mais ou menos horas de tortura e dor, após drenar por completo qualquer fluido humano, pelo que a sede se manifestava como um dos seus mais severos padecimentos. Curiosamente, só o quarto relato do Evangelho narra esta exclamação, preferindo os outros evangelistas dizer apenas que a Jesus foi dada uma bebida avinagrada (Mateus 27:48; Marcos 15:36; Lucas 23:36) – talvez a posca que os valentes soldados romanos estavam bem acostumados a usar por todo o Império.
O Jesus que agora clamava “tenho sede” era o mesmo que antes tinha afirmado: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos” (Mateus 5:6), ou “… aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que salte para a vida eterna” (João 4:14) e ainda “… quem crê em mim nunca terá sede (João 6:35). Ali estava o Jesus que se oferecia para dessedentar todo e qualquer outro, agora sujeito àquela bebida amarga e desprezível, tratado sem mordomias nem desvelo, como se de um transgressor se tratasse. Antecipando decerto este difícil passo, este era também o mesmo Jesus que apenas umas horas antes tinha clamado ao Pai: “… se queres, passa de mim este cálix, todavia não se faça a minha vontade, mas a tua” (Lucas 22:42).
Este é o paradoxo que deslumbra. O mesmo Jesus que conheceu o que é chegar ao limite humano da sequidão é também a fonte divina da mais pura e fresca das águas. Mas a água que ele dá a beber é a das suas lágrimas vertidas na cruz – pelo que, para o cristão, chorar não pode ser sinal de desespero mas sim a expressão da mais pura gratidão a Jesus pelo seu sacrifício e a motivação para uma vida transformada. Como evoca uma antiga oração:
Ouvindo o som do divino discurso proclamando
“bem-aventurados os que choram agora
pois esses serão consolados”
muito desejamos chorar nossos pecados
mas os olhos de pedra
e a dureza de coração nos impedem
nem lacrimejar podemos
Por isso Senhor
tendo amolecido primeiro pela penitência
no nosso coração a fonte da sua dureza
derrama em seguida abundantemente
por dom da tua graça
torrentes de lágrimas em nossos olhos.
Ou como Victor Hugo (1802-1885) escreveria muitos séculos mais tarde em Les Contemplations:
Vós que chorais, vinde a Deus, porque ele chora.
Vós que sofreis, vinde a ele, porque ele cura.
Vós que tremeis, vinde a ele, porque ele sorri.
Vós que passais, vinde a ele, porque ele permanece.
A mensagem da cruz é deixarmo-nos confrontar e interpelar pelo exemplo de Jesus, mas em simultâneo ter a capacidade de ver e ir mais além. O que muitas vezes na vida parece ser o fim é apenas a oportunidade que faltava para um novo começo. O vocábulo grego tetélestai (tete,lestai), utilizado apenas por duas vezes em todo o Novo Testamento, é traduzido por “terminadas” (João 19:28) e por “consumado” (João 19:30). Não obstante, trata-se de uma forma verbal de teléo (tele,w) que remete para o que está mais além, para o objetivo, para a completude. A missão de Jesus não terminava ali na cruz, mas apontava para o que viria a acontecer uns dias depois. Do caos, da confusão, da desorientação, amiúde brota o propósito. Tal como Ambrósio (c. 340-397), um dos mais destacados doutores da Igreja, notou em relação ao relato da procura desenfreada pela criança perdida no Templo de Jerusalém (Lucas 2:41-52), “não é por acaso que, esquecido na carne pelos seus pais, ele certamente pleno da sabedoria e da graça de Deus é encontrado após três dias no Templo. É um sinal de que aquele que foi crido morto pela nossa fé, se ergueria de novo após três dias da sua triunfal paixão e surgiria no seu trono celestial com honra divina”. É por isso que o Jesus “terminado” na cruz só se consegue compreender através do Jesus “encontrado” no jardim após deixar o túmulo vazio.
Timóteo Cavaco é presidente da direção da Aliança Evangélica Portuguesa desde 2022, coordenador pedagógico no Seminário Teológico Baptista e investigador colaborador do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa.