1. As sucessivas teologias da missão

As teorias e as práticas sempre nascem e crescem numa relação dialéctica e de interacção recíproca. Por isso mesmo, não é descabido um olhar para as sucessivas teologias que sustentaram e fundamentaram a missão da Igreja nas chamadas ‘terras de missão’, particularmente em África. Efectivamente, por razões bastante diversas, tanto o continente americano (com uma mais rápida cristianização das sociedades) como o mundo asiático (de onde o cristianismo praticamente desapareceu no sec.XVIII) não se prestam tanto como o continente negro-africano (o Norte de África é realidade bem distinta) a uma leitura histórica das sucessivas teologias da missão[i].

Desde o século XV até hoje houve, naturalmente, vários discursos missionários para a África, cada qual ligado a determinada prática evangelizadora[ii]. Digamos que o sentido evolutivo dessas teologias e práticas missionárias foi e é o de um crescente respeito para com aquele continente.

1. a) A “salvação das almas

Desde o séc. XV até ao séc. XIX, tal teologia assentava numa compreensão estreita do “fora da Igreja não há salvação”. Interessava civilizar os bárbaros e baptizar os condenados à perdição… Evangelização, pouca! Respeito para com pessoas, pouco; objectivamente, a missão esteve ligada ao tráfico de escravos e comércio vantajoso dos europeus. Respeito para com as culturas africanas, pouco; tudo era considerado atraso, superstição, paganismo! Ainda assim, seria necessário e muito justo, distinguir-se a macro-dimensão, isto é, os resultados objectivos da missão da Igreja, e a micro-dimensão, ou seja, as boas intenções subjectivas de muitos missionários que, no entanto, não puderam superar a ambiguidade da sua ligação à expansão colonial.

2. b) A “implantação da Igreja

Em finais do séc. XIX e princípios do sec.XX aparece uma nova estratégia e um novo pensamento missionário. Trata-se de plantar em África uma(s) Igreja(s) como no Ocidente: boa e organizada hierarquia (clero nativo), bons métodos (catecismo de Pio X), boas obras (missões cheias de oficinas, escolas, hospitais). Há, evidentemente, uma ainda grande dependência do estrangeiro, do Ocidente, mas é inegável um trabalho mais em profundidade por parte de inúmeras congregações missionárias, masculinas e femininas, o qual significou muitas vezes um progresso humano, espiritual e técnico-cultural nos países de missão.

3. c) A “adaptação” ou “pierres d’attente”

Nascidas do movimento negritude, estas teologias revelam um maior escutar da África. Há traduções da Palavra de Deus para as línguas e dialectos africanos, produção de catecismos locais, algum africanizar da liturgia. Mas é algo ainda de superficial, feito sobretudo por ocidentais e a partir de quadros de pensamento ocidentais. Uma acção periférica bem retractada no título do livro de V. Mulago: «Visage africain du christianisme» (1962).

Resumindo: o que todas as teologias da missão ou africanização têm em comum é o facto de serem teologias ‘judaízantes’[iii]. Trata-se de uma linguagem analógica mas com bastante sentido: assim como existiram tentativas de imposição do judaísmo no cristianismo primitivo, também estas teologias são essencialmente pensamentos importados da Europa, muitas vezes acompanhados de um espírito de conquista e imposição mal dissimulados.

E assim, quer por simples intuição quer por métodos de reflexão crítica, muitos africanos se foram dando conta de que era necessário passar de uma adaptação superficial ou duma colagem do cristianismo ocidental às culturas africanas, a uma verdadeira incarnação da fé e mensagem cristãs em terras de África que, ela própria, desembocasse em teologias verdadeiramente africanas – caso das actuais teologias da inculturação, da libertação ou da reconstrução.

 

  1. As três igrejas

Bento Domingues, no prefácio à obra de Lawrence Henderson – A Igreja em Angola – afirma: «A imagem que melhor corresponde à Igreja em Angola é a de um rio muito vasto atravessado por várias correntes»[iv]. Isto mesmo poderia ser dito das Igrejas africanas em geral. Porém, e ainda que correndo o risco de algum simplismo, ou podendo falar deste tema com uma outra linguagem – por exemplo, os três modos de ser igreja –, creio que são facilmente reconhecíveis as presenças de três igrejas no contexto colonial lusófono, concretamente em África. Poderíamos designá-las por Igreja colonial (ou Igreja dos brancos), Igreja evangelizadora (ou Igreja dos autóctones) e Igreja profética (ou Igreja da resistência nacionalista).

 

1. Igreja colonial

Esta igreja identifica-se claramente, no caso português, com a Igreja católica romana, já que é ela praticamente a única que está ligada ao poder colonial. Ela está subordinada à Concordata do Estado Português com a Santa Sé e ao Acordo Missionário Português de 1940, assim como ao Estatuto Missionário (1941) que, no fundo, são versões mais modernas e actualizadas do famoso regime do padroado, criado nos inícios da expansão marítima portuguesa, e no qual o Papa delegava ao Rei de Portugal o exclusivo da organização e financiamento de todas as atividades religiosas nos domínios e nas terras descobertas por portugueses. Atente-se, a título de exemplo, naquilo que o Papa Nicolau V escreveu ao rei D. Afonso V de Portugal, na Bula Dum Diversas (1452): ali se concede «plena e livre faculdade para invadir, conquistar, expulsar, derrotar, subjugar os sarracenos, pagãos ou outros inimigos da cristandade e o direito de conduzi-los à servidão perpétua, de confiscar os seus bens e ocupar as suas terras»[v].

De facto, após as decisões da Conferência de Berlim (1884-85) e do conhecido mapa cor-de-rosa, as potências coloniais europeias foram desafiadas e obrigadas a penetrar e ocupar os vastos territórios do continente africano, sob pena de perderem o direito a essas soberanias. A Igreja vai acompanhar esse movimento e, por isso mesmo, a missão cristã vai conhecer ali um desenvolvimento extraordinário. Então, não constituirá qualquer surpresa que esse empreendimento global constitua simultaneamente uma expansão colonial e uma expansão da Igreja. De um ponto de vista objectivo (que não julga muito possíveis boas e generosas intenções individuais dos missionários), poder político colonial e igreja estão indissoluvelmente ligados e é certamente assim que aparecem aos olhos dos africanos.

A intensificação da ida de portugueses para as colónias africanas acontece em meados do século XX. Convidam-se, entusiasmam-se e estimulam-se todos os que decidam ir para África começar uma nova vida, numa terra rica de oportunidades. Muitos milhares de portugueses arriscam-se nesse projecto (não esqueçamos que a pobreza em Portugal era muito extensa), muitas empresas aventuram-se também nesses novos mercados e o próprio Estado vai criar uma série de colonatos naqueles territórios.

E também a Igreja se desloca para África. O clero autóctone é quase inexistente e, por isso, são missionários europeus (grande parte portugueses, mas não só) que vão prestar assistência religiosa essencialmente aos colonos e, mais tarde, com o começo da guerra colonial, com o envio maciço de capelães militares que acompanhavam a tropa portuguesa. A grande maioria destes missionários não chegou a ter contacto com a população autóctone, tendo desempenhado serviço religioso junto dos colonos portugueses, em paróquias de cidade e vilas, e outros no espaço dos quartéis militares. É certo que, simultaneamente, há uma outra igreja (de que falarei em seguida), um pouco à margem desta expansão colonial, mas é indesmentível este casamento de interesses político-religiosos em tal empreendimento. Isto está bem patente no Acordo Missionário de 1940, onde, por exemplo, se podem ler estas declarações: «Nas circunscrições missionárias a vida religiosa e o apostolado serão assegurados por corporações missionárias reconhecidas pelo Governo» (art.1); «A Santa Sé, antes de proceder à nomeação de um arcebispo ou bispo residencial ou dum coadjutor cum iure successionis, comunicará o nome da pessoa escolhida ao Governo Português a fim de saber se contra ela há objecções de caracter político geral» (art.7); «Além dos subsídios previstos no artigo 9, o Governo Português garante aos Bispos residenciais, como Superiores das missões das respectivas dioceses, e aos Vigários e Prefeitos Apostólicos, honorários condignos e mantém-lhes o direito à pensão de aposentação» (art.12); «Todo o pessoal missionário terá direito ao abono das despesas de viagem dentro e fora das colónias» (art.14).

Parece-me também significativo e exemplificativo desta aliança, ao menos tácita, entre igreja e estado, o caso da Rádio Ecclesia, Emissora Católica de Angola. Criada entre os anos de 1954 e 1955, desde sempre assumiu uma ‘Linha Editorial Missionária, Patriótica e Civilizadora’, com uma ‘Grelha de Programas ao Serviço de Deus e da Pátria’. Anos mais tarde, em 1971, o então director da Radio Ecclesia, Padre José Maria Pereira, faria inúmeros discursos públicos laudatórios de Salazar e Marcelo Caetano, com afirmações como estas[vi]: «Salazar não hesitou em proclamar: “Portugal nasceu à sombra da Igreja e a religião católica foi desde o começo elemento formativo da alma da Nação e traço dominante do carácter do povo português. Nas suas andanças pelo mundo – a descobrir, a mercadejar, a propagar a fé – impôs-se sem hesitações a conclusão: português, logo católico…Na nossa história, nem heresias nem cismas; apenas vagas superficiais, que se atingiam por vezes a disciplina, não chegavam a perturbar a profunda tranquilidade da fé. A uniformidade católica do país foi, através dos séculos, um dos mais poderosos factores de unidade e coesão da Nação Portuguesa»; «Marcelo Caetano, por sua vez, diz: “Cristandade significa tudo o que está nas verdades daquela Fé de que fomos e somos fiéis e missionários. Fé que recebemos na plenitude dos seus dogmas e da sua moral, e de que nos constituímos, não apenas crentes, mas evangelizadores. A estrutura e a força da nossa civilização estão indissoluvelmente ligadas à fé cristã. Não seremos mais quem somos no dia em que nos afastarmos da fidelidade à divina mensagem de Cristo».

 

2. A Igreja evangelizadora (ou dos autóctones)

Esta Igreja representa toda aquela vida e trabalho missionário junto das populações autóctones e, neste caso, não diz respeito apenas à Igreja católica romana, mas sim a todas as outras confissões cristãs presentes naqueles territórios. No caso de Angola, L.Henderson estuda e divulga, para além da corrente católica, as Igrejas missionárias protestantes, a corrente pentecostal, as Igrejas messiânicas e as chamadas ‘igrejas independentes’ (que alguns designam de seitas e cresceram exponencialmente no pós-independência)[vii].

É certo que toda acção de grupos sociais, de cariz religioso ou não, tem sempre uma dimensão política, quanto mais não seja por omissão ou desinteresse pela realidade política. Mas a verdade é que esta extraordinária actividade missionária praticada por todas aquelas igrejas tem como preocupação primeira e quase exclusiva o desenvolvimento humano, pessoal-social-religioso, dos homens e mulheres da África profunda, daqueles que vivem longe dos grandes centros mais cosmopolitas e ocidentalizados, e isso era feito um pouco à margem de um directo pronunciamento político, fosse ele de apoio ou de oposição ao governo colonial.

Grande parte desta tarefa evangelizadora era realizada a partir da chamada ‘missão cristã’. A missão, afinal, embora pertencesse a uma circunscrição eclesiástica mais vasta – uma diocese – era de certa maneira polo bastante autónomo, constituído muitas vezes por um templo, uma casa para os missionários, uma escola, umas oficinas e um espaço para cursos de formação. Por toda a África negra se podem encontrar ainda estas missões, às centenas, e os territórios portugueses não foram excepção.

Mas mesmo quando as várias igrejas foram crescendo e já avançavam para estruturas mais diversificadas e menos pesadas que as tradicionais missões, nunca a chamada evangelização catequética se separou dum profundo interesse e empenho pela alfabetização e desenvolvimento escolar, pela criação de postos e assistência sanitária, pela promoção feminina, pela formação em artes e ofícios. A obra social das igrejas foi notável. O já citado L.Henderson, inclusive, intitula o cap. V da sua obra da seguinte forma: «A escola: o principal meio de implantar a Igreja e de fomentar o seu crescimento». Não é de estranhar, pois, que no pós-independência, os quadros africanos que assumiram as responsabilidades políticas, sociais e empresariais dos seus países, tivesses sido esmagadoramente formados nas escolas e missões cristãs das várias igrejas.

No caso desta realidade eclesial que aqui considerei em segundo lugar, a pergunta mais importante que se poderá colocar não seria tanto como ela se situou face ao poder político colonial, mas sim como é que ela respeitou ou não, verdadeira e profundamente, as culturas dos povos que evangelizava. Isto é, houve ou não perspectivas de inculturação? Houve ou não conhecimento, respeito e valorização das suas culturas? Segundo Willowbank, no contexto das ciências sociais, «a cultura é um sistema integrado de crenças (sobre Deus, ou sobre a realidade, ou a significação última do mundo), de valores (sobre o que é bom, verdadeiro, belo e normativo), de costumes (como se comportar, as nossas relações humanas e maneiras de falar, rezar, comer, vestir, trabalhar, jogar, fazer comércio, lavrar a terra, etc) e de instituições que exprimem estas crenças, estes valores, estes costumes (governo, tribunais, templos ou igrejas, família, escolas, hospitais, fábricas, armazéns, sindicatos, clubes, etc) que reúnem uma sociedade e lhe dão um sentido da sua identidade, da sua dignidade, da sua segurança e da sua continuidade»[viii]. Então, pergunta-se: houve evangelização inculturada com atenção e positiva consideração de todos aqueles elementos culturais? Ou, pelo contrário, prevaleceu aquele antigo espírito que presidiu a muita realidade missionária no passado e segundo o qual os missionários mais não tinham que fazer senão ‘baptizar e civilizar’? Ou ainda, por outras palavras… terão os missionários portugueses em África acolhido o apelo de Libermann, quando, um século antes, dirigindo-se aos seus companheiros, no Senegal, os desafiou deste modo: «despojai-vos da Europa, fazei-vos negros com os negros»? Sem esquecer a famosa afirmação de Paulo VI, em 1969, em Kampala (Uganda): «vós podeis e deveis ter um cristianismo africano».

Não é fácil uma resposta a estas perguntas e tal intenção reclamaria um outro estudo. Mas tenho para mim que, por um lado, houve bastante interesse na africanização do cristianismo, com tradução da Bíblia e catecismos nas línguas nativas, com estudo e organização dessas mesmas línguas, com celebrações litúrgicas de coloração mais africana, recolha de sabedoria tradicional e seu confronto com os valores cristãos, etc; por outro lado, parece-me inegável que se ficou (e ainda se está) um pouco aquém da criação de um cristianismo verdadeiramente africano e não apenas um cristianismo ocidental revestido superficialmente de um verniz africano.

 

3. A Igreja profética (ou da resistência)

D.Sebastião de Resende, primeiro bispo da Beira, diocese de Moçambique criada em 1940, anota no seu Diário Íntimo, logo em 1944, que «impera a escravatura na Beira! Não há maneira de se convencerem de que os pretos são pessoas humanas», e, em 1956: «A escravatura existe em Moçambique, não há dúvida, e em forma bem rígida». Por isso, desde o início da sua actividade como bispo, fustigou as injustiças clamorosas de que os negros eram vítimas, combateu o trabalho forçado e a arbitrariedade nas relações de trabalho. Era tal a exploração dos negros, subjugados pelos interesses do colonialismo, que chegou a escrever no Diário Íntimo, em 1960: «O comunismo é necessário, já que os homens só à força se emendam». Adriano Moreira faz esta síntese da pessoa e acção de D.Sebastião de Resende: «Pelo menos desde 1945 que combatia o trabalho forçado e a arbitrariedade nas relações de trabalho; defendia desde 1951 a criação dos estudos universitários na [então] África portuguesa; sustenta, em 1961, a necessidade da ‘integração plena e total de pretos e brancos de Moçambique’, defendendo, em 1966, contra as teimosias, que se acabe de ‘uma vez para sempre com o ultrapassado Estatuto do Indigenato’»[ix].

É possível que as vozes proféticas de denúncia do poder colonial sejam relativamente pouco conhecidas. Mas a verdade é que não são tão escassas quanto isso! Aliás, coincidindo com a morte de D.Sebastião de Resende, em 1967, D.Manuel Vieira Pinto é nomeado Bispo de Nampula e dá continuidade à acção de D.Sebastião, o que lhe valeu forte repressão e vigilância por parte do Estado Novo, tal como aconteceu em Portugal ao Bispo do Porto – D.António Ferreira Gomes –, por sinal publicamente solidário com D.Manuel Vieira Pinto.

Não nos afastando de Moçambique, impossível é omitir a denúncia que os chamados ‘padres do Macuti’ fizeram dos massacres de Mukumbura realizados pelas tropas coloniais portuguesas (em Novembro de 1971). Entre aqueles padres da região do Macuti, havia missionários portugueses, padres espanhóis de Burgos e Padres Brancos (membros de uma Sociedade Missionária africana, fundada na Argélia em finais do sec.XIX). Todos eles foram perseguidos, alguns deles presos e praticamente todos expulsos do território. E logo de seguida, foi a vez do padre católico inglês Adrian Hastings denunciar os horrendos massacres de Wiriyamu (Dezembro de 1972), nas vésperas da visita de Marcelo Caetano a Inglaterra, em 1973, e que desacreditou em muito o regime português.

Provavelmente ainda menos conhecidas que as de Moçambique são as vozes da Igreja que em Angola se levantaram contra o poder colonial. Entre outros materiais, são de referir dois artigos que nos aclaram bastante no assunto: um de Manuel Sousa Gonçalves, outro de Tony Neves[x].

Após o 4 de Fevereiro de 1961, data oficialmente reconhecida como a do início da luta armada pelos movimentos independentistas de Angola, e às complicações que se seguiram em Luanda (confrontos no cemitério do Alto das Cruzes, perseguições da Polícia, tensão nos musseques), a PIDE-DGS decide intervir no Seminário Maior de Luanda, instituição da Igreja Católica para a formação dos futuros padres, apercebendo-se de que ali existia um foco anti-colonial. Três padres, professores no Seminário, a saber Vicente Rafael, Joaquim Pinto de Andrade (irmão de Mário Pinto de Andrade, um dos fundadores do MPLA) e Alexandre do Nascimento (vinte anos mais tarde feito arcebispo e Cardeal de Luanda), são expulsos e exilados para Portugal. Joaquim Pinto de Andrade é mesmo preso, no Aljube, os outros dois ficam com residência fixa em Casas Religiosas masculinas.

Entretanto, em Luanda, quem mais sofreu foi o Cónego Manuel das Neves, muito hostilizado pelos europeus, que sabiam da sua ligação a membros dos movimentos independentistas e apoiava as suas famílias. Criaram-se boatos e inventaram-se até mentiras para denegrir a pessoa do padre Manuel das Neves, que não só era Cónego como Vigário Geral da Diocese e Pároco da Sé. O Arcebispo de Luanda, D. Moisés Alves de Pinho sempre defendeu o seu Vigário Geral, mas isso não impediu a sua vinda forçada para Portugal, aliás como o P. Manuel Franklin (mais tarde ordenado Bispo na Angola independente) – ambos acabando por ser ‘colocados’ com residência fixa em Braga. Mas vários outros padres vieram exilados para a então chamada ‘metrópole’, como por exemplo o P. Martinho Samba (natural do Libolo), o P. Osório, o P. Lino Guimarães (natural da Quibala).

Mas se até aqui se mencionaram exemplos de resistência no campo católico, não esqueçamos que foi também muito grande o ataque às Igrejas e pastores protestantes. Embora longa, é muito apropriada uma citação do artigo já anteriormente referido de Tony Neves:

«A primeira Missão protestante, fundada em Angola, a de São Salvador do Congo, foi também a primeira a receber ordem de encerramento, em 1961. O comando militar português tomou de assalto as instalações onde funcionava uma Igreja, uma escola, vários dormitórios, um hospital e as residências de quantos ali trabalhavam. Foi o início das investidas da tropa portuguesa contra quem não dava sinais de apoiar o governo colonial. A história continuou com o encerramento das Missões de Quibocolo, do Bembe, de Calambata. Nos finais de 1962, todas as Missões da Canadian Baptist Foreign Mission Society retiraram-se de Angola. O resultado foi dramático, em termos numéricos: ‘no seu relatório anual de 17 de Agosto de 1961, o secretário-geral da Aliança Evangélica de Angola revelou que o número de missionários protestantes em Angola tinha passado de 256 no dia 1 de Janeiro de 1961 para 167 em Agosto do mesmo ano, o que equivalia a uma redução de 34,7%’. Tudo isto por causa do encerramento de algumas missões e pela não concessão de vistos de entrada a quantos, depois de gozarem a sua licença, pretendiam regressar a Angola. As expulsões e detenções prolongaram-se no tempo e afectaram todo o território angolano. Dois dos casos mais mediatizados foram o do missionário metodista Raymond Noah, detido pela Pide, em Julho de 1961, e o do médico Rodger Shields, missionário em S. Salvador. Este acabaria por abandonar Angola por não ter condições para exercer a sua missão, com liberdade e sem ameaças. A Igreja Metodista sofreria ainda a prisão, em Setembro de 1961, do Reverendo Júlio Miguel e seus três filhos, Emílio de Carvalho (hoje Bispo), João Carvalho e Roberto Carvalho. O Governo, em 1963, obrigou os missionários protestantes a receber autorização da Pide para deslocações fora das suas zonas administrativas, proibiu a emissão de programas da rádio pelos protestantes e o envio de literatura para diversos pontos de Angola, a partir da tipografia da Missão do Dôndi. Caso singular é o do Pastor Henderson e sua família, impedidos de regressar a Angola em 1969, após gozo de férias nos EUA, seu país natal»[xi].

 

  1. Conclusão

O percurso realizado ao longo desta reflexão mostra a razão de ser do seu título: durante o Estado Novo, a Igreja conheceu momentos de grande entendimento e submissão ao poder colonial, mas também assumiu posturas críticas de profundo distanciamento das políticas governamentais.

O governo português tentou controlar a situação colonial com intervenções legais que colavam a Igreja mais forte (a Católica romana) ao agir do próprio regime (com a Concordata e o Acordo Missionário de 1940 e o Estatuto Missionário de 1941). E a Igreja Católica, por seu lado, aproveitando algumas benesses materiais dessas políticas e acordos, e tendo como fundamento teológico as perspectivas da ‘salvação das almas’, da implantação da Igreja e da adaptação, deixou-se submeter aos interesses coloniais do estado Novo.

Mas os ventos soprados de toda a África vinham noutra direcção: independências políticas iam-se sucedendo, teologias críticas e da libertação começavam a surgir. Tudo isso levou a que numerosos missionários interviessem na luta anti-colonial, tendo muitos deles sofrido perseguição, prisão, exílio. E esta realidade não foi exclusiva da Igreja Católica: as Igrejas Protestantes, menos protegidas pelo regime, tinham até mais condições para investir na luta anti-colonial. Não é por acaso que líderes como Agostinho Neto, Jonas Savimbi e Holden Roberto fossem filhos de influentes pastores protestantes.

Finalmente, haveria que nunca esquecer o enorme significado, e suas posteriores consequências, da iniciativa do Papa Paulo VI em receber, no Vaticano, em 1 de Julho de 1970, os líderes políticos das colónias portuguesas em África, a saber, Marcelino dos Santos (FRELIMO), Agostinho Neto (MPLA) e Amílcar Cabral (PAIGC). A Igreja contribuía, assim, decisivamente, para o desmoronar do império colonial português.

 

 

[i] Além disso, para nós portugueses, a África assumiu uma importância tal que justifica a consideração específica que aqui se faz.

[ii] Sobre o tema cfr O.Bimwenyi, Discours théologique négro-africain, Présence Africaine, Paris 1981, na primeira parte da obra (cerca de 300 páginas); J.Nunes, Pequenas Comunidades Cristãs, UCP, Porto 1991, pp.100-118.

[iii] Cfr.O.Bimwenyi, oc, p.182.

[iv] L.Henderson, A Igreja em Angola, Ed.Além-Mar, Lisboa 1990, p.7.

[v] Citação de P.Suess, Inculturação e Libertação, Vozes 3/1986, p.8. Trabalho indispensável e elucidativo sobre esta matéria é o de C.M. Witte, Les Bules Pontificales et l’éxpansion portugaise au XVeme siècle, Revue d’Histoire Ecclésiastique 48(1953), pp.683-718; 49 (1954), pp.438-461; 51 (1956), pp. 413-453 e 809-836; 53 (1958), pp.5-46 e 443-471.

[vi] Discurso durante a visita do Ministro do Ultramar a Angola, em 19-8-1971, in Arquivo da Procuradoria das Missões Espiritanas em Angola, pasta única.

[vii] Estudos não muito longínquos consideram a possibilidade da existência de cerca de 10 mil destas igrejas na África sub-sahariana, 6 mil das quais na África do Sul.

[viii] Relatório Willowbank, Doc.Cath. 1932 (18-1-87), pp.113-114.

[ix] Adriano Moreira no livro Profeta em Moçambique (Difel, Lisboa, 1994)

[x] M.Gonçalves, Padres Angolanos exilados em Portugal durante o período final da época colonial, Missão Espiritana 52 (2015), pp.170-174; T.Neves, As igrejas e o nacionalismo em Angola, Revista Lusófona de Ciência das Religiões, Ano VI (2007), nn.13-14, pp.511-526.

[xi] T.Neves, artigo citado, pp.518-519.

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