
“Espinosa, o filósofo com quem mais tenho dialogado ao longo dos anos, ao analisar os afectos que nos levam a agir, dá um lugar central à alegria.” Ilustração: Benedictus de Spinoza, Public domain, via Wikimedia Commons.
“As grandes alegrias são coisas como o casamento ou os filhos, intimidades que nos mantêm à tona, mas essas grandes alegrias contêm perigosas correntes invisíveis. E é por isso que necessitamos também das pequenas alegrias: um funcionário simpático nos Armazéns Bradelees, ou a empregada do Dunkin Donuts que sabe como cada cliente gosta do café.“
(Elisabeth Strout, Olive Kitteridge, Lisboa, Alfaguara, 2020, p. 93)
As grandes alegrias são intensas e, como tal, esporádicas. Ligam-se a eventos marcantes cuja recordação nos traz sempre felicidade e bem-estar. Reconstituímo-las com um misto de prazer e de saudade e a sua memória é uma espécie de tónico a que recorremos para afastar estados de depressão ou de angústia. Elas constituem um repositório essencial para o nosso bem-estar, uma lembrança de que a vida vale a pena e de que há momentos e episódios que podemos revisitar para esconjurar medos e angústias. Mas são as pequenas alegrias do quotidiano que alimentam o nosso tónus vital e que, embora insignificantes, nos ajudam a suportar o cinzento dos dias. Habituamo-nos a elas e quando falham, ressentimo-nos.
Espinosa, o filósofo com quem mais tenho dialogado ao longo dos anos, ao analisar os afectos que nos levam a agir, dá um lugar central à alegria considerando as paixões alegres essenciais para o nosso pleno desenvolvimento e procurando afastar tanto quanto possível a tristeza e o sofrimento. No Tratado sobre a Reforma do Entendimento, uma das suas primeiras obras, fala-nos do seu projecto essencial que é alcançar o sumo bem, ou seja, procurar “alguma coisa através de cuja descoberta e posse, eu fruísse para todo o sempre uma alegria contínua e soberana.”Mas esta tarefa que entende ser o destino do sábio, não desdenha as pequenas alegrias da vida que são enaltecidas na sua obra magna – a Ética,bem como nos seus Tratados Políticos onde analisa os tipos de sociedade mais propícios à felicidade humana. Para ele as diferentes formas de alegria aumentam a potência da mente pois as paixões alegres são mais fortes e têm mais poder do que as demais. Espinosa critica a mentalidade austera e sacrificial muito presente em certas correntes filosóficas do seu tempo. A ela contrapõe a fruição moderada dos prazeres, um preceito que todos deveriam seguir e que ele coloca entre as regras práticas a que deve obedecer uma vida boa. Por isso recomenda que seleccionemos os bons encontros e cultivemos a arte de bem viver pois é apanágio do sábio fruir dos prazeres quotidianos:
“É de um homem sábio, digo, retemperar-see saborear moderadamente comidas e bebidas agradáveis, assim como os perfumes, a amenidade das plantas verdejantes, os adornos, a música, os desportos, os teatros e outras coisas do género, das quais cada um pode usar sem nenhum dano para outrem.”
Na sua Ética Espinosa concede um papel preponderante à alegria e à tristeza pois constituem o critério a partir do qual os afectos são julgados. Aquilo que nos causa alegria aumenta o nosso ser e é bom. Aquilo que nos provoca tristeza é mau porque diminui o nosso poder de agir. Importa pois aproveitar as coisas agradáveis da vida, o que implica a sua fruição e partilha. Por isso o filósofo sustenta que:
“O homem livre, isto é, aquele que vive segundo o simples ditame da razão, não se conduz pelo medo da morte; pelo contrário, deseja directamente o bem, isto é, agir, viver, conservar o seu ser com base na procura do que lhe é útil. Por isso não há nada em que ele menos pense do que na morte, e a sua sabedoria é uma meditação sobre a vida.”
Ainda a propósito da importância da alegria em Espinosa, lembro o livro que António Damásio dedicou a este filósofo, convocando-o para uma análise da neurologia do sentir. E verificamos que quer o filósofo quero cientista se empenham em combater a tristeza, valorizando as paixões alegres. Tanto um como outro consideram quecultivar a alegria é essencial para a saúde do organismo e para a ocorrência de uma vida conseguida.
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Ao pensar nas pequenas alegrias que constituem o meu dia a dia lembro o prazer que sinto quando, em cada manhã, ao ligar o computador, constato que as distâncias se apagam nas constantes mensagens que recebo de amigas, de amigos e de colegas residentes em diferentes partes do mundo, mostrando que estarmos longe não impede a troca de impressões nem a partilha de imagens e de novidades. O facto de nos bastar um clique para podermos aceder a notícias de toda a ordem, ler livros, jornais e artigos, entrar em reuniões dialogando com gente diferente, é algo que constantemente me surpreende e gratifica.O uso selectivo das redes sociais permite-me estar a par do que se passa com amigos e conhecidos, solidarizando-me com os seus desgostos e com os seus momentos felizes. O diálogo que diariamente estabeleço com filhos, netos e amigos é outra fonte de alegria que me obriga a sair de um solipsismo egoísta. Jardinar, mexer na terra, plantar, podar, vigiar as flores que crescem e espantar-me com a criatividade da natureza é um prazer que reservo para os fins de semana quando saio de Lisboa mas que diariamente me é acessível quando trato dos vasos da minha varanda. E um outro pequeno prazer do qual tenho usufruído desde o início do 7MARGENS é ficar a par de tudo o que de interessante se passa no mundo, na política, na cultura e nas diferentes Igrejas. Daí o meu permanente reconhecimento a esta possibilidade de estar a par do que se passa na Igreja e no mundo, algo que o jornal me proporciona diariamente.
Maria Luísa Ribeiro Ferreira é professora catedrática de Filosofia da Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa